voltar para índice da página memória

 

A Condição de Mulher na TV

Memória de Isabel Fomm de Vasconcellos

 

Quem viveu e cresceu numa democracia dificilmente pode imaginar o que é viver e crescer num regime ditatorial como existia no Brasil da minha juventude.

A juventude dos anos 1960 julgava-se uma geração única e privilegiada pois, em todo o mundo ocidental (e mesmo em alguns países do oriente), esta juventude estava unida por uma mesma bandeira: a da liberdade.

Com as apresentadoras de então do programa "Mulheres" da TV Gazeta, Ione e Claudette

 

Nada de me arrumar espaço só porque eu era sua irmã. “Vire-se! – disse ele – Se a idéia desse seu programa é realmente viável, alguém há de querer investir nela. Arrume um patrocinador e o espaço será seu.”

 

foto para imprensa, 1985, por Gastão

 

cenário do Condição de Mulher na TV Gazeta

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alda Marco Antônio e eu, 1986, TV Gazeta

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cenário do Condição de Mulher na Rede Mulher de Televisão, 1997

 

 

 

com o médico psiquiatra José Ângelo Gaiarsa

 

 

no cenário da Rede Mulher de TV com a bruxa

 

Em tudo, pregava-se a liberdade: de pensamento, sexual, afetiva, política, econômica... O mundo seria muito melhor, haveria muito paz e felicidade quando tudo fosse livre.

 

“É proibido proibir” – cantava Caetano Veloso que já, naquele tempo, gostava dos paradoxos.

“All You Need Is Love” – berravam os Beatles em quase todas as rádios e vitrolas do planeta.

“Faça Amor, Não Faça a Guerra”.

Justiça social. Distribuição de renda. Igualdade para as minorias oprimidas, negros, indios e mulheres.

 

O mundo estava cheio de gênios: Sartre, Simone de Beavouir, Marshall McLuhan, Salvador Dali, Pablo Picasso, Tom Jobim, John Lennon, Martin Luther King, Bety Friedan.

 

O Brasil estava cheio de gênios: Niemayer, Vinicius de Morais, Clarice Lispector, Cacilda Becker, Chico Buarque, Drummond, Rita Lee, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Mário Schenberg, Ruth Escobar e tantos outros.

 

Mas, para os senhores do mundo, o grande perigo de tantos clamores de liberdade e tantos livres pensadores era a ameaça vermelha, o horror do comunismo. Fidel vencera em Cuba, expulsando de lá os turistas americanos que faziam daquele país o seu parque de diversões. A União Soviética era a outra metade poderosa. (Só em 1989, quase três décadas depois, é que o mundo descobriu que o socialismo gerara mais pobreza, mais desigualdade e menos progresso tecnológico e científico do que o mundo capitalista.)

Mas os senhores do mundo morriam de medo da ditadura do proletariado e, para tentar evitá-la, tramaram e financiaram as ditaduras militares da América Latina, entre elas, a do Brasil.

 

Os instrumentos da Ditadura eram os mesmos instrumentos de todos os incompetentes da história da humanidade: o terror, a censura, a tortura física e psicológica.

O grande escritor de ficção científica Isaac Asimov tem um frase lapidar sobre o tema. Diz ele: “ A violência é o último recurso da incompetência”.

 

Então, apesar dos anseios de liberdade, a juventude da minha geração vivia sob a espada de Dâmocles da ditadura militar. Pensar tornou-se uma coisa perigosa. Qualquer um que ousasse discordar do regime corria sério risco de vida. * (*para os comunicadores que optaram por dizer “risco de morte”, devo discordar: é a vida que é posta em risco e não a morte.)

Assim, sob censura e sob o terror, vivemos mais de duas décadas no Brasil.

 

Em 1985 estávamos apenas emergindo das profundidades tenebrosas da ditadura militar. A censura existia também dentro de nós. Era dificil pensar que já fosse possível expressar-se claramente.

Mas, timidamente, os movimentos organizados começavam a mostrar sua cara. Obrigados ao silêncio por duas décadas, sobreviveram no limbo e na clandestinidade e no exílio.

Foi assim também com as mulheres organizadas.

 

As feministas brasileiras, que apareceram por aqui nas duas últimas décadas do século XIX, exigindo, como suas irmãs americanas e européias, o direito ao voto (e por isso eram chamadas sufragistas, de sufrágio que, como se sabe, quer dizer voto), no começo do século XX falavam em controle do próprio corpo e direito à contracepção.

O voto, para as brasileiras, veio em 1934.

Depois disso, as mulheres pareciam ter perdido o espírito de luta.

Pareciam, mas não perderam.

Com a anistia, em 1979, muitas  lideranças femininas vieram à luz. Nos partidos. Nos sindicatos. Na Saúde e no Direito.

 

Destas lideranças, algumas se projetaram e são hoje nomes pra lá de conhecidos do grande público, como a nossa ex-prefeita Luiza Erundina, a empresária e atriz Ruth Escobar, a advogada e política Zulaiê Cobra Ribeiro, a médica Dra. Albertina Duarte e a nossa atual vice prefeita da cidade de São Paulo, Alda Marco Antonio.

 

Há muitas outras. Algumas não tão populares, mas nem por isso menos importantes, como a ex-senadora e professora da USP, Eva Blay. Ou como a Amelinha Telles, até hoje à frente de sua organização, a União de Mulheres. Outras já nos deixaram, como a jurista e apresentadora do TV Mulher da Rede Globo, Floriza Verucci ou a ex-vereadora Irede Cardoso, que era jornalista da Folha de SP, editora do mesmo TV Mulher da Globo e feminista de carteirinha.

 

Eu, no entanto, já nasci feminista. Minha mãe – que nascera em 1912 – vivia dizendo que não tinha essa coisa de um direito pra eles e outro pra elas, que tinha que ser tudo igual.

Deixei a militância católica da JEC porque um padre, que era meu amigo, resolveu censurar a minha mini-saia. Nunca me filiei a um partido político porque logo de cara percebia que as mulheres, nos partidos e até nos grêmios escolares, só serviam cafezinho e redigiam atas. Eu já mandava todo mundo praquele lugar e virava as costas. Nunca tive paciência, como tantas mulheres admiráveis tiveram, para ir me impondo devagar.

 

Em 1985, depois de longas e quase instransponíveis negativas, meu irmão Alvan (que fora executivo das TVs realmente importantes, como a Excelsior e a Globo) resolveu abrir as portas da televisão para mim e me deu a incumbência de produzir, para a TV Gazeta de São Paulo, o primeiro programa médico da TV Brasileira, o Junta Médica. Só que eu queria mais.

 

Já provara, quando criança, o gostinho de estar na frente das câmeras como apresentadora.  Eu tinha 5 anos de idade quando, por algumas edições, substitui a apresentadora mirim de um programa da TV Paulista, canal 5 (depois Globo), que ficara doente. Eu queria produzir e apresentar um programa de TV para mulheres que não tratasse as mulheres como imbecis.

 

Mas meu irmão era um profissional. Nada de me arrumar espaço só porque eu era irmã. “Vire-se! – disse ele – Se a idéia desse seu programa é realmente viável, alguém há de querer investir nela. Arrume um patrocinador e o espaço será seu.”

Parecia impossível, mas eu arrumei.

 

Uns meses antes, eu tinha conseguido convencer a Lintas (uma agência de propaganda importante da época) a investir nos temas de saúde da mulher do Junta Médica, para seu cliente, Johnson&Johnson. Eles toparam investir também no meu programa para mulheres de vanguarda.

Como se chamaria o programa?

Conversando com minha amiga de infância, a socióloga Iara Moya, ela me disse: Condição de Mulher.

 

Comecei a telefonar para todos os partidos políticos, sindicatos, ongs (que naquele tempo ainda não se chamavam assim) de mulheres e reuni, no meu apartamento, as principais lideranças de todos os movimentos femininos e feministas que havia no Brasil daquela época.

 

Bom, estes movimentos, quase sempre condenados à obscuridade, teriam afinal um espaço numa TV aberta (naquele tempo não havia, aliás, outro tipo de TV). Era a menor TV do dial paulista, mas era uma TV.

Todo mundo adorou a idéia. Menos a garota que representava o PT. Ela disse que as mulheres do PT não participariam, a menos que eu “me definisse politicamente”.

 

Eu me recusei a entrar no jogo dela. Afinal, a minha condição no programa seria a de jornalista e as convicções políticas de um jornalista não devem ser explicitadas. O meu dever era apenas informar ao público as várias posições e idéias que existiam entre as mulheres e não tomar partido desta ou daquela... Mas o PT daquele tempo – pelo menos parecia, pela reação da moça – tinha complexo de perseguição... rs...

 

O programa Condição de Mulher estreou no dia 8 de dezembro de 1985.

 

A produção e a apresentação eram minhas e como repórteres eu tinha a Andréa Dantas (que, anos depois, seria a diretora da Revista Caras), a Mônica Krausz (que, depois, foi editora das mais importantes revistas para crianças) e a Tânia Regina Pinto (que, mais tarde foi editora do suplemento feminino do Estadão e repórter da TV Manchete, atual Rede TV). A Tânia foi a primeira jornalista negra da TV brasileira.

Condição de Mulher estreou na TV Gazeta mas, depressinha, já começou a ser exibido em Salvador, Bahia, pela TV Itapoan; em Porto Alegre, pela TV Guaíba; em Brasília, pela TV Capital.

Naquele tempo, havia só dois canais da Embratel para transmissão via satélite. Tínhamos que mandar as fitas (enormes, num sistema chamado U Matic) por avião. Era uma loucura!

 

O programa discutiu todas as reivindicações femininas para a Assembléia Constituinte. E teve a alegria de ver que todas elas foram contempladas pela nova Constituição brasileira. É bem verdade, no entanto, que as leis complementares (que colocariam em prática esses novos direitos) só aconteceram anos depois e nem todas as leis são cumpridas, até hoje. Mas, de fato, as leis brasileiras, no tocante ao direito das mulheres, estão entre as mais avançadas do mundo. As feministas brasileiras costumam ser cumprimentadas por isso em congressos internacionais.

 

O programa Condição de Mulher ficou na TV Gazeta até 1989, quando se transferiu para a TV Record. Em 1994, estava na Rede Mulher e foi até 1999, quando eu o substitui pelo Saúde Feminina, unindo assim as minhas duas “especialidades” na TV: mulher e saúde.

 

 Feministas e Brasileiras

na foto, da esquerda para a direita:

Dra. Albertina Duarte, eu, Amelinha Telles, Vilma de Oliveira, Alda Marco Antônio, Ida Maria, Floriza Verucci. Programa Condição de Mulher, TV Gazeta, em 8 de Março de 1986.

 

Aqui, você pode assistir dois vídeos com a participação de Alda Marco Antonio no meu programa Condição de Mulher.

 

O primeiro é de 1985 e fala sobre o 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Tem um depoimento da Alda, e várias falas das feministas famosas da época. ASSISTA

 

O segundo é de 1987. Tem a Alda, a Silvia Pimentel e a Nair Goulart, sindicalista. O tema é a greve de maternidade que as mulheres islandesas promoveram em sua reivindicação pela paz..

ASSISTA.

 

Alda Marco Antônio no set do Condição de Mulher, na TV Gazeta, 1988.

 

Alda e eu no lançamento de um dos meus livros.

 

LINKS QUE CONTAM NOSSA HISTÓRIA NA TV:

programa médico (Junta Médica)

Rede Mulher de TV

Alvan

História da nossa família na TV Brasileira

A série que se chamou “Rádio Patrulha”.

 

Em termos legais, depois que se regulamentaram as conquistas femininas, alcançadas na última constituição, temos um melhor código civil, a mulher casada deixou de ser cidadã de segunda classe e a legislação brasileira, no que concerne à mulher, é uma das mais avançadas do mundo. Na prática, porém, as leis não são cumpridas.

 

 

No Brasil de 1985, as mulheres ainda eram organizadas em movimentos, herdeiros das nossas avós sufragistas e das militantes de várias organizações contra a ditadura militar. Dez anos antes, sob a mordaça da censura à imprensa e à liberdade de expressão, sob a ameaça da prisão e da tortura, muitas mulheres trabalhavam para levar consciência política e da condição social feminina às menos favorecidas.

 

Nestes tempos ainda não havia delegacias da mulher, ainda se acreditava que “em briga de marido e mulher não se mete a colher” e, quando uma mulher, era vítima de violência sexual e precisava recorrer às autoridades, nas delegacias, encontrava um clima de deboche e quase sempre era ela própria considerada responsável pela violência que sofrera. “Se ele te estuprou, foi porque você provocou”.

 

Também não havia licença maternidade e a mulher trabalhadora, depois de dar à luz, tinha que voltar ao emprego imediatamente.

 

É verdade que, tirando as questões da licença maternidade e da delegacia da mulher, pouca coisa as brasileiras conquistaram, na prática, nos últimos 20 anos.

 

Em termos legais, depois que se regulamentaram as conquistas femininas, alcançadas na última constituição, temos um melhor código civil, a mulher casada deixou de ser cidadã de segunda classe e a legislação brasileira, no que concerne à mulher, é uma das mais avançadas do mundo.

 

Na prática, porém, as leis não são cumpridas. Empresas com mais de 30 funcionárias deveriam, por lei, ter creches no local de trabalho. Mas quase nenhuma empresa tem. As mulheres trabalhadoras ainda ganham em média 30% menos que os homens na mesma função.

 

Por outro lado, a existência das delegacias da mulher, criadas em 1985, deram maior visibilidade à questão da violência doméstica. Mas 25% das brasileiras continuam apanhando regularmente dos companheiros. A licença maternidade e a licença paternidade – conquistas das mulheres organizadas – criaram na sociedade um maior respeito pela função social da maternidade.

 

São conquistas menores do que as sonhadas pelas mulheres batalhadoras de 20 anos passados. Mas são conquistas. E, como diria o Dr. Paulo Gaudêncio, nosso grande psiquiatra, na sociedade as coisas não mudam, elas “vão mudando”, num processo lento e contínuo, no gerúndio.

Essas conquistas recentes das mulheres, porém, são sim resultado da atuação de várias organizações femininas.

 

Em 1985, as brasileiras se mobilizaram nacionalmente para ver incluídas na nova constituição do país os direitos que elas reivindicavam. 1985 foi também o ano em que surgiram os conselhos estaduais e o conselho nacional dos direitos da mulher.

 

No dia 8 de dezembro de 1985, entrava no ar, pela TV Gazeta, o meu programa Condição de Mulher, que pretendia, justamente, dar maior visibilidade às questões sociais femininas e apoiar as mulheres que se organizavam para colocar suas reivindicações para a Assembléia Constituinte.

 

O programa durou muito mais que a constituinte. No ar pelas TVs Gazeta e Record, foi, em 1994, para a Rede Mulher de TV e se manteve no ar de 1985 a 1999, sempre discutindo a condição social da mulher no Brasil e no mundo.

 

O programa tinha duas madrinhas: Iara Moya, socióloga e executiva, que sugeriu o nome “Condição de Mulher” e Alda Marco Antonio, política, engenheira e feminista.

 

Alda foi a segunda presidente do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo. A primeira, foi a senadora Eva Blay. Ruth Escobar, nessa época, presidia o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

Havia ainda outras mulheres que se projetavam no cenário nacional, muitas das quais estão na luta até hoje, como a professora Silvia Pimentel, a médica Albertina Duarte, a jurista, já falecida, Floriza Verucci (que fez parte do elenco do famoso TV Mulher, da Rede Globo), Amelinha Telles  e tantas outras.

 

Alda Marco Antonio foi ainda, mais tarde, Secretária Estadual das Relações do Trabalho, no governo Montoro e Secretária do Menor, no governo Quércia. Foi, ainda, vic-prefeita da cidade de São Paulo.

Ela é engenheira, por formação. É uma mulher bonita, muito alegre, sempre sorridente e, para mim, sempre foi uma inspiração e um exemplo.

 

Os direitos e o respeito que temos hoje na sociedade ainda podem estar longe do ideal, mas seriam muito mais distantes do ideal não fossem mulheres corajosas e batalhadoras como a Alda. A ela, os meus mais sinceros agradecimentos, o meu respeito e a minha admiração.

 

 

 

voltar para índice da página memória