Pauliceia de Mil Dentes

trecho do livro de Maria José Silveira

Pôs o folheto na bolsa e viu um grupo de jovens caminhando em sua direção. Os dois que iam à frente carregavam uma faixa aberta:
O CARRO É A CICUTA DO PLANETA.
FECHEM A INDÚSTRIA AUTOMOBILÍSTICA!
Um dos jovens se parecia muito com Natanael, seu afilhado, e Ametista levou um pequeno sobressalto. Logo ele, cujo pai trabalha na fábrica da Mercedes, se acontecesse uma coisa dessas seria mais um desempregado, aí, como ficaria? Ou talvez fosse por isso mesmo, se todo mundo ficar desempregado, alguma coisa vai ter que ser feita. Se a indústria automobilística fechar no mundo todo, alguma coisa vai ter que ser feita, os governos vão ter que tomar uma atitude, pensar numa saída, ou o mundo vira um caos. Hoje, ainda há tempo. Daqui a alguns anos, talvez não. O planeta estará todo envenenado, todo mundo desempregado, e o caos não terá mais saída.
Fazia tempo que não via o afilhado. Natan tem cabeça, é estudioso. Conseguiu entrar na USP da Zona Leste, e, na última vez que o viu, estava mudado, mais magro, mais jeito de homem que de menino. Um jeito de sorrir também diferente, não como o sorriso de um menino que se entrega, mas outro, enigmático, que já não mostra do que está sorrindo. Pode ser de você. Os olhos também traziam outro conhecimento, traços de outras coisas que viram e que acenderam um tipo de fogueira onde antes havia coisa mais suave, provavelmente meninice. Até que podia mesmo ser o afilhado aquele rapaz segurando a faixa. Natan sempre teve uma visão diferente das coisas. Um visionário, ela achava. Um maluco de pedra, Rubi dizia.
O mundo é complicado demais, isso ela sabe, e se deixa invadir outra vez por aquele sentimento tão seu, de pequenez, incapacidade, sarjeta. O afilhado universitário até que teria seus bons motivos pra rir dela.

Para deixar de pensar em coisas deprimentes, voltou a caminhar pela Paulista, passando por casais abraçados, grupos animados, pessoas felizes, pessoas que pertenciam à cidade e que a cidade abrigava como se fosse uma mãe de braços abertos.
E dava aconchego.
Dava emprego.

 

Andre Crespo Zupi - A Metrópole  http://www.zupi.com.br/andre_crespo/

Ametista estava quase chegando à Brigadeiro Luís Antonio quando viu um grupo de pesquisadores a sua frente e se animou. Adora, simplesmente adora responder às pesquisas de rua. Considera um dia de sorte quando encontra um grupo de pesquisadores, fosse do que fosse.
 Responde às perguntas como se o mundo tivesse parado ali pra escutar.
 Nome: Ametista Salgado Benevides. Endereço: Rua Jundiaí, 305, Vila Andrade, no Campo Limpo. Estado civil: solteira. Desempregada. Escolaridade: segundo grau completo. Casa própria e mais duas casinhas de aluguel (dela e das irmãs, herança do pai falecido, profissão: ferramenteiro, mãe, doméstica, também falecida). A renda vem do aluguel e do emprego fixo da irmã mais velha, Escarlete, e varia quando ela ou Rubi, a irmã mais nova, estão com algum emprego, como agora, Rubi está com um bico de vendedora de perfumes. A casa tem dois quartos, banheiro, cozinha, copa, sala, alpendre, mas eles só querem saber do número de banheiros. Só um. A casa é mobiliada, tem tudo de que precisam. Quatro camas (uma que ninguém usa), dois armários para roupas, dois sofás na sala, uma mesa de centro, mas isso também eles não perguntam. Perguntam sobre os eletrodomésticos: uma tevê 25 polegadas tela plana (um luxo de Escarlete), um telefone fixo, três celulares (um de cada irmã), na cozinha tem a mesa, quatro cadeiras, geladeira, um freezer pequeno, um fogão de quatro bocas, um forno micro-ondas. Enceradeira, aspirador de pó, um liquidificador, uma batedeira. Carro, não, carro elas não têm. Ametista desconfia que por isso eles são classe C ou D, classe média baixa, mas os moços nunca respondem quando ela pergunta em que categoria está, dizem que essa parte não é a deles, e que não podem dizer. Nem pra ela, que sempre responde tudo com toda sinceridade e, pesquisa terminada, tenta encompridar a conversa, saber mais. Manter a mente aberta para aprender as aprendizagens da rua. E gosta ainda mais quando o pesquisador é homem. Não por nada, é porque gosta mesmo, parece que eles sabem perguntar melhor com aquele jeito deles de ter um tipo de autoridade na voz, se concentram mais, têm mais postura. As pesquisadoras ficam muito de tititi entre elas, dão risadinhas à toa, parecem estar mais se divertindo do que trabalhando. E quando os pesquisadores homens perguntam, “Srta. Ametista, em sua casa tem isso, tem aquilo?”, ela adora. E gostaria que eles continuassem perguntando mais coisas, por exemplo, a cor da casa (amarelinha por fora, com janelas de esquadrias de metal), a cozinha azul, a sala amarela também, os quartos cor-de-rosa e o banheiro verde. Ela escolheu as cores, as irmãs gostaram. É uma casa colorida, gostaria muito de contar pra eles, mas isso ninguém pergunta.
 Também já deu duas entrevistas na rua para programas de tevê, e depois ficou com as irmãs esperando pra se ver na tela, mas não apareceu. Não devem ter gostado do que ela respondeu e tiraram sua parte. Mas pode ser que tenha aparecido numa hora que elas não estavam assistindo, Rubi disse. É, talvez, pode ser, só que nunca ninguém vai saber. Mas tudo bem, não importa. O que importa é que ela foi útil, foi requisitada. É um alívio grande saber que tem momentos em que ela importa para alguém.
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 Quando está na Avenida Paulista, muitas vezes Ametista vai até o final, a Casa das Rosas, que acha bela. É o consolo que reserva para o dia mais perdido do que o usual. Examina o cartaz com a programação. Nem sempre tem coragem para entrar; fica por ali, zanzando pelo jardim, debaixo do caramanchão de rosas que nem sempre tem rosas.

 Não é a mesma coisa que nos shoppings, é outra coisa, mas, quando chega ali, também se acha menor. Pequena. No shopping, é uma pequenez que a humilha, que a exclui como se exclui uma casca de ferida. Na Casa das Rosas, é uma pequenez vinda do amor. Da admiração. Aquelas pessoas tão cultas, seguras de si. Poetas, escritores, professores. Só de poder estar ali ao lado deles lhe parece um prêmio. Quase tudo é grátis e ela poderia entrar sempre, mas, para ousar dar esse passo e se misturar com essas pessoas, tem que ter coragem, e nem sempre tem. Pode contar nos dedos as vezes em que entrou e se sentou logo na primeira cadeira que encontrou, e lá ficou até o final. Da primeira vez, eram poetas declamando poesias que a emocionaram muito. Gravou o nome de dois deles. Frederico Barbosa. Um homem de voz doce, tonzinho meio quebrado no final. O outro era Cláudio Daniel. Muito sério, parecendo bravo, mas não deveria ser. E já tinha visto também uma poeta muita linda, e com um nome bonito: Mariana Ianelli. Estava de botas de couro e um tipo de xale vermelho sobre o vestido preto. Ametista poderia ficar ali para sempre escutando aquelas vozes. Outra vez foi um cara alto, magrinho, boné na cabeça, brinquinho na orelha, tênis, fazendo uma palestra. Luiz Bras, ela também guardou o nome dele, e do que ele falou, uma coisa que às vezes volta a sua cabeça.
 A literatura, ele disse, deve servir para inquietar, despertar perguntas e não respostas.
 Inquietar, meu Deus? Mas se a vida já a inquieta tanto!
 Será que estava lendo os livros de um jeito errado? Ou não tinha entendido o que o escritor disse? Se os livros não dão respostas, quem vai dar? Quer dizer, como saber? Quer dizer, talvez não seja mesmo uma resposta que o livro dá, e, sim, uma passagem para outra coisa, um lugar diferente. Será que é isso que ele estava dizendo que era a inquietação que o livro serve para dar? Essa vontade de ir para outro lugar?
 Se Rubi estivesse junto, teria entendido direito.

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