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O Poder e as Estrelas livro de Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
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Capítulo 20 - A Volta |
Melhor, concluíam os cornianos, não ter nenhuma máquina e poder viver como se lhes dava na cabeça: livres para caçar, pescar, dançar, cantar, comer e fazer amor...tudo sem aquela coisa insuportável da hora marcada. Não era à toa – refletiam eles – que os terráqueos, a despeito de todo o seu conhecimento e de todas as maravilhas que podiam realizar – passavam metade da vida de mau humor.
Vincent Van Gogh, O Caminho dos Ciprestes |
Nos meses seguintes muitos departamentos públicos da administração das aldeias foram obrigados a pedir a liberação de mais imigrantes terráqueos para a Área Neutra.
Tudo começara lentamente, com alguns cornianos que iam à Aldeia
de Pautros e, de repente, decidiam se juntar aos selvagens dissidentes
de forma definitiva. O pessoal terráqueo da psicologia, que analisava as dissidências, foi
quem deu o primeiro alarme. Era como uma epidemia. Os cornianos, que até
então eram cordatos e se mostravam encantados com os conhecimentos e o
novo estilo de vida que os terráqueos, agora passavam a questionar a
necessidade de trabalhar algumas horas por dia, de usar roupas e cuidar
delas, de precisar de dinheiro para obter as máquinas, a comida, o
conforto, tudo! Era como se estivessem se cansando da brincadeira. Um
deles, ao justificar sua decisão de abandonar tudo e partir, dissera a
um psicólogo: - Viver como terráqueo foi bom, mas agora estou cansado de brincar disso. Quero voltar a andar nu, pescar e caçar, dormir quando tenho vontade, não fazer nada quando nada quiser fazer. Vou embora.
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Em um ano, mais de metade da população das aldeias se bandeara para a tribo dos selvagens. Ninguém voltara.
Uma estranha nostalgia foi atingindo o coração dos que ainda viviam na Área Neutra. Era muito bom ter máquinas pensantes, era ótimo enxergar à noite sem tem que acender o fogo, era sensacional ter água encanada e mais sensacional ainda poder assistir aos filmes holográficos. Mas manter tudo isso dava muito, muito trabalho e, depois de um certo tempo, a vida ficava monótona. Pior ainda que a monotonia era a obrigação, o relógio, o trabalho repetitivo fazendo com que os dias fossem sempre um igual ao outro, sem surpresas, sem liberdade. Melhor, concluíam os cornianos, não ter nenhuma máquina e poder viver como se lhes dava na cabeça: livres para caçar, pescar, dançar, cantar, comer e fazer amor...tudo sem aquela coisa insuportável da hora marcada. Não era à toa – refletiam eles – que os terráqueos, a despeito de todo o seu conhecimento e de todas as maravilhas que podiam realizar – passavam metade da vida de mau humor. E, assim, conversando e refletindo, todos iam chegando à mesma conclusão: sua vida, antes, era melhor, mais alegre, mais livre, mais feliz.
Réa
andava nervosa,
perguntando-se aonde e em que tinham errado. Tutôr também andava nervoso e evitando a companhia dela, se concentrando
em seu próprio grupo, ficando muito mais tempo com os filhos e com Marla. Certa noite, para a surpresa da Almirante, o Chefe apareceu em sua casa: - Nunca nenhum corniano pediu isso, Tutôr. Mas é claro que é possível.
Desde que você não se importe em sofrer esterilização definitiva, você e
Marla. As crianças poderão fazer suas vidas como se fossem cidadãs da
Terra. Mas como você vai sobreviver? Terá que trabalhar, provavelmente
vocês dois. É claro que existem muitas coisas que vocês estão
habilitados a fazer e não faltam empregos na Terra hoje em dia. Mas lá
você será apenas um cidadão comum, sem os privilégios que tem aqui. Além
disso, vai abandonar seu povo? - Ele é que me abandonou Réa. Mais de metade do meu povo já fugiu do meu
governo para a aldeia de Pautros. Talvez ele esteja certo e eu, errado.
Talvez eu seja mesmo um traidor e tenha me deixado maravilhar pelos
conhecimentos e pelo estilo de vida de vocês. Então, penso eu, se me
tornei um terráqueo e já não sirvo mais para chefiar o meu povo, devo ir
para a Terra. - Mas e os que ficaram? Você vai abandoná-los? - Ouça-me, querida, eles não ficarão por muito tempo. Mais cedo ou mais
tarde, todos se unirão aos selvagens. Essa é a nossa maneira de viver:
selvagemente. Mesmo que tenhamos conhecido a civilização da Terra, esse
é o nosso verdadeiro estágio. Só mesmo eu e Marla é que não queremos
retornar à velha vida. Mas, entre os que ficaram, adivinhamos o desejo
de ir. Está nos olhos deles. De todos. Réa, arrume um lugar para mim na
Terra. - E eu? Você vai me deixar? - Toda a Área Neutra perderá o sentido. Você também vai perder o
sentido. Sua missão aqui está terminando, Réa, pode acreditar. Nos
encontraremos um dia, quando você também voltar à Terra. - Não, Tutôr. Isso não vai acontecer. Você está enganado. Há muitos
cidadãos cornianos que estão felizes aqui e tudo isso aqui vai continuar
e progredir. Tutôr apenas deu-lhe um beijo na testa e disse: - Se é o que você quer. Pense melhor. - Já pensei. Prometa. - Está bem, eu prometo. Réa dormiu mal à noite e chegou ao gabinete acreditando que Tutôr estava errado e que muitos dos cornianos que se bandearam para a aldeia de Pautros acabariam se arrependendo e, sentindo falta da vida confortável e rica, voltando. Mas Arvos e Iala a esperavam.
- Mas Iala...seu curso de medicina?
- É claro que os conhecimentos que adquiri me auxiliarão a encontrar
novas ervas e novos usos para aquelas que já conheço. Mas o meu povo se
foi e muitos, dos que ficaram, acabarão indo também. Lamento que seja
assim, Almirante. Ninguém, melhor do que nós, sabe o quanto você
trabalhou, o quanto sonhou e ousou para criar para o nosso povo uma vida
melhor. Mas não foi essa vida que eles preferiram. Lamento.
Iala tinha lágrimas nos olhos. Arvos também.
- Espero que compreenda, Almirante – disse ele. – Foi uma grande lição
para nós tudo o que aconteceu. Seu trabalho não foi em vão. Eu mesmo
tenho hoje uma outra visão do Universo, mas ainda assim nada me impedirá
de acreditar que a noite seja o manto dos deuses.
A Área Neutra perdeu o sentido.
As casas e os estabelecimentos foram abandonados.
E a Frota Espacial decidiu manter os terráqueos longe daquele
continente, considerado propriedade dos nativos, e para estes instituiu
uma Fundação que investiria, no próprio planeta, os recursos financeiros
que os cornianos desprezavam, fruto de seus impostos recebidos pela
exploração dos outros continentes. Tutôr recebeu um alto posto nessa
Fundação, mas todos os outros membros pertenciam ao governo terráqueo de
Cornos e da própria Terra.
O que outrora fora uma aldeia transformada em cidade de sonhos, era
agora uma cidade fantasma.
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