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O Poder e as Estrelas

livro de

Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano  

 

 

 

A general Rea e Arvos, o sacerdote do Planeta Cronos, discutem a liberdade no amor.

Rea, há 20 anos casada com Narciso, descobre que pode sim amar a outro...

Capítulo 6 - A Fôrma

 

Réa conseguira, afinal, tornar-se almirante. Principalmente por sua contribuição no caso de Cornos. Depois daquela primeira reunião na Vênus Platinada ela decidira que não iria permitir que os cornianos fossem geneticamente destruídos. Parecia óbvio, mas essa era uma única questão que não fora cogitada em todas as milhares de observações sobre quando, como e de que mil maneiras seria realizada a assimilação dos cornianos e a colonização de seu planeta, pela terra.
 

Réa sugerira, então, que os preceptores enviados a Cornos, para contato com os nativos, devessem ser casados e de meia idade e que fossem devidamente esterilizados, por opção própria, para que não pudessem, de maneira alguma, contaminar o DNA dos cornianos, pelo menos por dez gerações. Os cornianos, por outro lado, de posse de toda a tecnologia de moderna medicina terrestre, seriam estimulados a reproduzir, reduzir-se-ia a zero a mortalidade infantil entre eles e, de posse do conhecimento terrestre, a expectativa de vida deles subiria muito.
 

 

Jean Auguste Dominique Ingres, Gianciotto descobre Paolo e Francesca (Divina Comédia, Dante)

Numa espécie de tratado de Tordesilhas, o planeta seria dividido em cinco áreas em cada território com as mesmas características geográficas, para que as cinco potências da Terra tivessem igual chance de exploração de riquezas. No continente habitado se criaria uma região delimitada onde a exploração de riquezas não ocorreria e cada uma das cinco potências tinha que se comprometer a ter ali missões de transmissão de conhecimentos. Criariam-se escolas, hospitais, centros de lazer e cultura e o único e principal objetivo nessas áreas seria fazer evoluir rapidamente o povo nativo para que, daqui a 100 anos, pudessem se incorporar totalmente, tendo livre acesso a todo o planeta e podendo, inclusive, misturar-se ao povo da Terra, como bem se lhes aprouvesse.
 

Foi uma semana de longas discussões de detalhes e guerra de interesses, mas a proposta de Réa, com relação a manter puro o DNA do cornianos, foi a grande sensação e a única unanimidade em todos os debates. Os terráqueos queriam, sim, a riqueza de Cornos, mas, talvez no inconsciente coletivo, temessem destruir uma raça, miscigenando-se com um número tão pequeno de seres que eram os seus únicos irmãos descobertos, até agora, na imensidão do Cosmos.
 

Se Réa alcançara notoriedade como uma das tripulantes do primeiro contato com os Cornianos, maior notoriedade alcançaria agora com a sua proposta de manter íntegro o DNA daquele povo.
Assim, muito a contragosto, o presidente teve que indicá-la para ser o Almirante, embora ele preferisse dar essa honra a Apolo, que só tinha mais nove anos de vida e era dono de um respeitável curral eleitoral.

 

De uma maneira geral, todos os delegados saíram satisfeitos da reunião em que se decidiu, na Vênus Platinada, o destino de Cornos. Os representantes do planeta também estavam felizes. O problema maior aconteceu quando se deu início às discussões sobre a autonomia da Estação Espacial. Toda a Terra tinha participado do esforço de construir a estação e todas as cinco grandes regiões exploravam comercialmente, direta ou indiretamente, as atividades comerciais e produtivas da estação. Dar autonomia à Vênus Platinada, seria abrir mão de uma receita razoável e muitos argumentavam que essa mesma receita ainda não pagara o grande investimento feito para construir, no espaço, uma verdadeira Terra em miniatura. Réa, nessa questão, foi voto vencido.
Mas as atenções do mundo estavam voltadas para Cornos e não para a Vênus.
Réa viveu dias de glória, a agenda cheia, a mídia de todo o planeta disputando uma entrevista sua.
Depois de um dia daqueles, em que, ela sabia, estava se decidindo, nas altas cúpulas da Frota, a sua indicação para o almirantado e em que ela, tensa, passara o dia se controlando e dando mil entrevistas para veículos de todas as partes do mundo, conseguiu refugiar-se num restaurante discreto, exclusivo para oficiais da Frota e pode saborear um delicioso jantar na companhia de sua querida assessora, Major Mel. Foi a Major que notou a presença dos cornianos, numa mesa discreta, num canto do salão:
 

- Eles até já falam a nossa língua – disse Mel.


- São surpreendentemente inteligentes, para homens que estão pouco além da Idade da Pedra – respondeu Réa.

 

– Talvez tenhamos, na História, menosprezado os nossos antepassados.
Nesse instante, seu comunicador pessoal tocou. Era o seu companheiro, ligando da terra:
 

- Meu amor, estou louco de saudades! – disse a voz do Capitão Narciso.
 

- Eu também – mentiu ela, que, na verdade, mal pensara nele desde que ele partira para a sua missão em Nemus 4.
 

- Réa, você vai conseguir o almirantado.
 

- Acho que sim.
 

- Eu acabo de pousar na Terra e acho que vou voar até aí ainda esta noite.
 

Réa hesitou por um instante. Seus olhos, por um segundo, cruzaram com os olhos de Tutôr, sentado à sua mesa no canto do salão.
 

- Você não está cansado de voar?
 

- Eu devo voltar para terra amanhã de manhã. Mas poderíamos ter uma noite juntos, estou louco pra te ver.
 

- Eu também – mentiu ela mais uma vez – mas estou extremamente cansada e amanhã, logo cedo, volto para a Terra. Me espere, amor.
 

O que Réa não queria confessar nem para si mesma era que, apesar dos quase vinte anos que vivera com Narciso, muito a magoara o pouco caso com que ele encarara sua luta pelo almirantado. Doera em Réa descobrir que o seu companheiro não a julgava capaz de atingir tão alto objetivo. Racionalmente, ela o perdoara. Afinal ele era um homem e homens raramente admitiam mulheres no círculo de poder, ainda que vivessem com elas. Além disso o orgulho de macho de Narciso ficara ferido ao ver sua companheira saltar do primeiro comando de uma nave à patente de major, quando da sua admissão na expedição à Cornos e, depois, apenas 3 anos depois, vê-la elevada à General. Era uma carreira rápida demais para qualquer oficial da Frota, quanto mais uma mulher. O orgulho de Narciso, ferido, deixava transparecer sua mágoa em pequenas agressões cotidianas que foram, por sua vez, ferindo Réa.
 

Réa e Mel coroaram seu jantar com uma magnífico licor.
 

- Bah. Estou cansada. Vou deitar. Você vem? – perguntou Mel.
 

- Acho que vou tomar a saideira ali no terraço do observatório. Quero olhar as estrelas.
 

- Se importa se eu me for?
 

- Claro que não, major, dispensada.
 

Réa, depois da despedida de Mel, postou-se no terraço do restaurante que tinha uma imensa clarabóia de onde se podia avistar a Terra, a Lua e as estrelas. Estava ali, relaxando, quando o sacerdote Arvos aproximou-se:
 

- Interrompo-lhe os pensamentos, general?
 

- De modo algum, Mestre Arvos. Eu estava apenas tentando relaxar um pouco.
 

- Como deve ser de seu conhecimento, general – disse Arvos fitando o firmamento- meu povo acreditava que as estrelas fossem apenas buracos que os deuses haviam feito no manto da noite. Ainda é difícil para mim, depois de todo o conhecimento que adquiri com os terráqueos, vê-las de outra forma.
 

- É entre elas que está o meu Lar – disse Réa, tomando subitamente consciência de que toda a sua vida havia sido pautada pelas viagens espaciais, pelas estrelas.
 

- Estou contente com a decisão tomada pelos terráqueos de colonizar o meu mundo e de ensinar ao meu povo toda a sabedoria que vocês acumularam. Mas, é claro que há sempre um mas, temo que algumas de nossas verdades se percam diante da força de tantas verdades que vocês tem para nos revelar.
 

Réa olhou para ele, espantada.
 

- De fato – continuou o sacerdote – há um único ponto em que eu considero que a nossa sociedade em Cornos é mais feliz do que o povo da Terra. É no que vocês chamam de amor. Eu o vi nas letras de suas músicas e até mesmo nos poucos livros que li nos computadores. Leio devagar, o general sabe que aprendi há muito pouco tempo a ler em sua língua e que me é difícil, entre tantas atividades que tenho tido entre vocês, ter tempo para a leitura. Mas, nesse tempo que passei aqui, aprendi que o amor entre machos e fêmeas é fonte de angústia para os terráqueos. Em Cornos não há esse sentimento obsessivo de posse entre os amantes. Lá, apenas amamos. E ninguém nunca nos disse, como pensam vocês, que o amor é exclusivo, que quando se ama alguém deve se amar apenas aquela pessoa. Os terráqueos sofrem quando amam e percebem que a pessoa a quem amam também ama uma terceira. Em Cornos, sabe, não temos isso. Cada amor é único, sim. Por isso podemos amar a quantas pessoas quisermos e ninguém se importa com isso. Nossos filhos, frutos do amor, são da tribo. Não são, como aqui, de um único casal. Tudo isso era muito estranho para mim, no começo. Mas agora até consigo entender. Desculpe-me se lhe digo isso, mas percebi a maneira como o general olha para Tutôr e como Tutôr olha para o general.
 

Réa caiu na risada:
 

- Mestre Arvos, eu sou uma mulher comprometida. Ainda há pouco estava falando com o meu companheiro...
 

- Capitão Narciso, não é?
 

- Ele mesmo.
 

- E o general o ama?
 

- Sim, eu o amo muito. Estamos juntos há 20 anos terrestres.
 

- Nunca amou outro?
 

- Acho que não, desde que conheci Narciso.
 

- Mas agora ama Tutôr?
 

Réa riu de novo. Agora, um riso nervoso.
 

- Bem...Tutôr é um homem extremamente atraente.
 

- Ama ou não?
 

- Mestre, deve saber que o amor é mais do que atração física.
 

- Ah, eu sei sim. Mas o que leio nos olhos de Tutôr e nos olhos do general também é.
 

- E o Mestre Arvos, um dos três representantes de Cornos, veio aqui para bancar o Cupido?
 

- O amor é uma coisa importante, general. Tão importante quanto qualquer decisão aqui tomada. Eu vi o seu amor por Tutôr e sei que ele a ama também, desde o primeiro dia em que a viu e que pensou que você era um deus. Mas se estou falando de amor é porque temo que a Terra contamine nosso povo com esse conceito torcido de amor, que acabe por estabelecer a angústia onde, hoje, só há alegria. Sabe, eu fiquei surpreso quando vi que na Terra também se faziam bolos. É claro que os bolos da terra são muito mais variados do que as simples misturas que fazemos em Cornos. Mas surpreendentemente o princípio é o mesmo. Também produzimos farinha e também a misturamos com gorduras e açucares e fermento e, no fim, todos os bolos são iguais. Nós também os assamos no calor, como vocês. E os colocamos em fôrmas, como vocês. Quando os terráqueos nos ensinarem a sua sabedoria, temo que nos coloquem em fôrmas e que nos moldem de acordo com suas crenças. Até aceito ser enformado e sair da fôrma cozido em nova forma. Só não gostaria de trocar a pureza de nossa maneira de amar pela angústia que o amor possessivo dos terráqueos cria. Penso que se o general, que é uma figura pública e cuja opinião é imitada pelos terráqueos, assumisse o seu amor por Tutôr, independente de seu amor pelo Capitão Narciso, talvez desse a nós, povo de Cornos, uma oportunidade de ter uma única fôrma onde cozinhássemos terráqueos.
 

Réa sentiu uma grande excitação, um rubor cobriu-lhe a face e lágrimas vieram-lhe aos olhos ante a possibilidade, antes nem sequer cogitada, de viver uma história de amor com Tutôr. Sorriu e disse:
 

- Eu lhe prometo, Mestre Arvos, que pensarei cuidadosamente no assunto.
 

- E eu lhe agradeço, general Réa, tenha uma boa noite – disse ele, virando-lhe as costas.
 

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