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		7. Pedidos de 
		Natal | |
| (Sueli Pinotti,2012, O Coral de Natal) 
		 Ele não interrompeu a narrativa dela. Lá fora, na calçada do banco que ficava em frente ao bistrô, um coral se apresentava e uma pequena multidão se acotovelava para ouvir as canções de Natal. 
 
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 Foi na televisão que descobriu seus sonhos. Sonhava com as mais belas roupas, sonhava com os automóveis luxuosos, sonhava com cabeleireiros e institutos de beleza, sonhava com a Rua Oscar Freire. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Messias Vito era o nome do rapaz e, como Magdala, ele também tinha um nome de guerra: Kiki Besteira, a maior audiência matinal de uma rádio AM bem colocada no ranking das emissoras paulistanas e com milhões de acessos na Internet. Kiki, em seu programa, denunciava todas as besteiras cometidas por figuras públicas, nacionais e estrangeiras. | conto de Isabel Fomm de Vasconcellos publicado no livro "Primeiro Chegam os Anjos" | 
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 Quando a 
		primeira lan house se instalou na cidade, Mada foi uma das primeiras 
		frequentadoras. Bonita e charmosa, insinuou-se para o dono do lugar e 
		logo ele concluiu que aquela morena poderia ser um excelente chamariz 
		para o seu estabelecimento. Assim, ensinou a ela os mistérios do 
		computador e, em troca da recepção aos clientes que ela fazia todas as 
		tardes e começos de noite, era permitido a ela navegar pela Internet sem 
		pagar.  Foi na 
		Internet que ela acabou conhecendo um rapaz com quem frequentemente 
		conversava num site de relacionamento. E, ingenuamente, contou a ele 
		seus sonhos. Estava meio velha – tinha 17 – para ser modelo, mas sonhava 
		em conseguir um trabalho na capital e subir na vida, poder andar nos 
		carrões que via nas novelas de TV, poder fazer compras no Iguatemi e na 
		Oscar Freire... Ele – 
		Demóstenes era seu nome, Demo, o apelido – prometeu que, no ano 
		seguinte, quando ela completasse 18 anos, mandaria uma passagem para que 
		ela viesse trabalhar em São Paulo. Ela não era a recepcionista da lan 
		house? Poderia ser recepcionista na empresa dele, que atuava no ramo de 
		entretenimento. Naquele ano, Mada concluía seu curso de segundo grau. A família fazia discreta pressão para que ela afinal, a exemplo de seus irmãos, conseguisse um emprego. Então ela anunciou que, ao completar 18 anos, em fevereiro, viajaria para São Paulo, onde já conseguira um trabalho e, na capital, se prepararia para prestar vestibular. 
 
 
 
 
 
 Foi se 
		sofisticando. Frequentava bons salões de beleza, lojas de alto luxo e 
		era uma das moças mais disputadas da casa. Tudo era encanto. Uma nova 
		bolsa. Um sapato italiano. Um vestido de seda. O ambiente chique e lindo 
		dos salões de beleza, o perfume dos produtos... O preço a pagar por isso 
		parecia até baixo. 
 Kiki, em seu programa, denunciava todas as besteiras cometidas por figuras públicas, nacionais e estrangeiras, em todas as áreas, dos políticos aos atores de novela, passando por nomes da vida cultural e social, celebridades e – o que ele mais gostava – mesmo gênios. “Todo o grande QI tem seu dia de bonobo”, costumava dizer ele. 
 
 Não que Messias ligasse para o Natal. Não ligava. Não tinha religião, dizia-se agnóstico e acreditava que as festas natalícias eram uma maravilhosa maneira de girar a economia, incrementar o comércio e usar o nome do tal Deus em vão... 
 
 Messias andava cansado de almoçar sozinho olhando as caras feias nas mesas ao redor. Sozinho, aliás, era a palavra que melhor o definia. Na rádio – seu reino – tinha um séquito de doze pessoas na sua equipe e milhões de ouvintes fiéis. Ali, todas as manhãs, de segunda a sábado, não se sentia só. Mas no resto... Só amizades profissionais, a família toda em Minas, seu estado natal, nenhum amigo, nem do tempo dos estudos, todos casados e, portanto, solteirões como ele (já tinha mais de 40) não eram muito benvindos em círculos de casais com filhos. Quanto às mulheres, apenas aventuras. Quando aparecia uma com quem ele acreditava que pudesse se envolver lá vinha um lamento do tipo “não posso pagar”, fosse por um vestido, um tratamento dentário ou estético. 
 As mulheres tinham aquela grande ilusão de que todo mundo que estava na mídia, principalmente no comando de um programa de sucesso, como era o caso dele, nadava em dinheiro. A realidade era muito diferente. E mesmo que não fosse, tudo o que ele não precisava era uma mulher interesseira ao seu lado. Mulheres solteiras havia aos baldes. Mas a companheira que ele sonhava... Ah... Nunca aparecera. 
 
 
 Ele 
		também riu: Foi o 
		começo de uma grande paixão.   
 
 
 
 
 Aquele que Magdala chamava de “patrão” era um dos mais influentes cafetões de luxo da cidade. Tinha uma rede de boites, casas de swing e edifícios chiques para encontros discretos de gente muito rica e/ou muito poderosa. Magdala ganhava muito bem, tinha seu próprio apartamento alugado nos jardins, frequentava os mais badalados estabelecimentos, já conhecera, acompanhando empresários e executivos, muitos lugares da moda em boa parte do planeta. 
 Aprendera a falar, a se portar, a se vestir, se maquiar. Passaria por uma menina rica. E estava apenas havia quatro anos nessa vida. Até um pouco de inglês já falava e, inteligente, caçava informações de arte, cultura, literatura, geografia, história e o que mais precisasse, na Internet. 
 Muitas vezes tinha ouvido falar contra o seu “patrão”. Demóstenes Correia já fora até condenado em alguns noticiários de TV, chegara a ser detido, mas tinha as costas largas demais para realmente se dar mal. Diziam que ele explorava os jovens, garotas e garotos de programa, que os escravizava, que ficava com a parte do leão. Magdala não dava ouvidos a nada disso. Achava – como certa vez lhe dissera um cliente – que o Demo administrava muito bem os seus negócios e era um ótimo empregador. Todos os seus “funcionários” tinham assistência médica, benefícios e até um fundo de pensão para a aposentadoria que, nesse ramo, era um tanto precoce. 
 Fôra acusado de estar metido com drogas, mas Mag sabia que ele não era trouxa. Drogas não entravam em suas casas, nem mesmo uma inocente maconhazinha. Se o cliente consumia drogas, problema dele, mas nunca fora dos aposentos particulares. De fato, tanto Mag quanto a maioria dos garotos que trabalhavam para Demo gostavam dele. A figura do cafetão que explora e maltrata fisicamente suas prostitutas parecia coisa de um passado remoto ou de outro mundo, que nada tinha a ver com o mundo deles. Por tudo isso Mag acreditava que poderia demitir-se, como em qualquer empresa. 
 Pediu 
		para falar com Demóstenes. Só conseguiu ser recebida por ele, em seu 
		luxuoso escritório, três horas depois. E ficou sabendo que não teria 
		nenhum problema para desligar-se dele, desde que pudesse pagar por tudo 
		o que lhe devia. – Como 
		assim? – perguntou ela. – Eu não lhe devo nada. Ele então projetou na grande tela ao seu lado a imagem da planilha que abriu no computador. Lá estavam contabilizadas todas as “dívidas” de Mag: drinks, refeições, roupas de cama, translados, telefonemas... Dia a dia, em quatro anos, somava uma pequena fortuna... Lágrimas vieram aos olhos dela. Compreendera, afinal, porque chamavam Demóstenes Correia de feitor de escravos. Ela era sua escrava. Mas não se daria por vencida. 
 – 
		Querida – respondeu ele com voz doce – não somos uma financiadora. Isso 
		aqui é um negócio. E olhe que não estou lhe cobrando por transformar 
		você, de uma caipirinha ingênua, em uma jovem requintada e viajada. Além 
		do mais, o que vou dizer aos seus clientes? Que você foi embora, que se 
		cansou deles, apenas por que se apaixonou por um radialista metido à 
		besta? Ela 
		estava havia pouco mais de uma semana com Messias. Como ele...? – Meu 
		bem – continuou o Demo, adivinhando-lhe o pensamento – nós sempre nos 
		mantemos completamente informados sobre as atividades das nossas 
		anjinhas e anjinhos. – Veja – 
		disse ele – você é uma das minhas melhores profissionais. Agora vem o 
		Natal. O movimento cai bastante. Vou lhe dar uns dias de folga. Faça 
		compras, vá ao cinema, encontre seu namorado e pense bem se vale a pena 
		jogar tudo para o alto por causa dele. Você pode ter as duas coisas. 
		Pode ter o radialista e seus clientes. Não atrapalhando o seu trabalho, 
		eu não tenho nada contra. Nas suas horas de folga, você pode fazer o que 
		quiser. Magdala 
		saiu de lá transtornada. Jamais percebera que não era uma mulher livre.
		 Entardecia. Caminhando pelas avenidas enfeitadas para o Natal, lágrimas escorriam e turvavam sua visão, transformando as luzes e os brilhos dos enfeites em borrões coloridos. Magdalena começou a pensar nos Natais de sua infância, quando toda a família se reunia na casa de seus avós maternos. Cada tia levava um prato típico da ceia. Os enfeites eram simples, ridículos, se comparados ao que existia aqui. A árvore era de plástico e ráfia verde, comprada pela avó muito antes do nascimento daqueles netos, seus primos e irmãos, enfeitada com bolas que quebravam e luzinhas piscantes. A avó tinha orgulho do maravilhoso presépio que montava na varanda de sua casa. Durante anos e anos fora enriquecendo o presépio com mais e mais figuras, trazidas para ela por amigos e parentes, imagens de tamanhos desproporcionais, de lugares distantes, todas ali, reverenciando o menino Deus deitado na manjedoura. 
 Pensando nisso ela sentia um grande constrangimento, como se o luxo e a sofisticação das decorações de Natal daquela parte nobre da rica metrópole estivessem zombando do orgulho simples com que sua família exibia e admirava o presépio da varanda da casa de sua avó. Pior. Como se a vida luxuosa (e pecaminosa, imaginou o reverendo da matriz a dizer) que ela levava fosse, ela própria, uma grande zombaria aquelas pessoas de sua família que, em seu despojamento, estiveram sempre cheias de amor e carinho para com ela e que lhe mandavam, a cada Natal, presentes simples, ingênuos mesmo, que sempre faziam com que ela se sentisse muito, muito mal. Era a compota de figo, feita pela mãe, uma blusinha de crochê, pelas mãos da vovó... E ela comendo tiramissu nos mais caros restaurantes paulistanos e usando as “blusinhas” de mil reais da Oscar Freire... 
 Pensava: 
		se não contasse, ele acabaria descobrindo. Se ele descobrisse, se 
		sentiria traído. Se ela contasse e ele também se sentisse enganado, 
		paciência. Pelo menos, contando, havia uma chance de não perdê-lo. Eram 11 
		da noite quando Mag e Messias saíram do bistrô aonde tinham se refugiado 
		quando ela lhe disse que precisavam conversar seriamente. Pensou 
		que choraria, ao contar a ele. Mas não chorou. Na verdade, refletia, não 
		era uma história triste. Fora a sua opção de vida. Ele não 
		interrompeu a narrativa dela. Lá fora, na calçada do banco que ficava em 
		frente ao bistrô, um coral se apresentava e uma pequena multidão se 
		acotovelava para ouvir as canções de Natal. Messias pensou que parecia 
		uma trilha sonora de novela, servindo de pano de fundo para as palavras 
		dela. Quanto 
		mais ela falava, mais ele se apaixonava. Quando ela terminou, ele disse 
		apenas: – É de 
		uma senhora idosa que ele me apresentou... – É dele 
		– disse Messias secamente. Deve ter câmera ou escuta. Mag 
		achou que ele via filmes policiais em excesso. – Nunca 
		mais pisaremos lá – ele continuou. – Você paga aluguel como? Pelo banco? 
		Na imobiliária? – 
		Deposito na conta dela, da proprietária. – Quando 
		vence seu contrato? Tem multa? Por 
		sorte, vencia em março. Assim resolveram que pagariam os três meses de 
		uma só vez e mandariam entregar as chaves na portaria.  – Mas e 
		o que eu devo ao Demo? – perguntou Mag. – Você 
		não deve nada. Não se preocupe. Sou jornalista. Também conheço gente 
		importante. Amanhã mesmo, saindo do programa, irei ver um amigo que se 
		encarregará de acalmar o Demo. Eu sei que esse diabo de homem deve dizer 
		a você que não quer perdê-la, que você é uma das suas melhores 
		profissionais. Mas você já está ficando velha pro negócio dele. Não vai 
		ligar muito, não. Em quatro anos você já foi uma mina de ouro.  – E 
		agora? Devo fazer minhas malas e me mudar, então? – Você 
		não me entendeu. Você nunca mais vai pisar naquele apartamento. Hoje 
		você dorme lá em casa. Amanhã vai comigo para a rádio, mais tarde vamos 
		comprar tudo o que você precisar, roupas, maquiagem, tudo... Na semana 
		do Natal meus programas não serão ao vivo. É a única folga que tenho no 
		ano. Vamos para a casa de seus pais, no interior e você vai me 
		apresentar à sua família como seu namorado e eu vou pedir sua mão em 
		casamento ao seu pai. Vamos passar o Natal com eles. Mag 
		começou a rir. – Não – 
		interrompeu ele – nós sempre nos conhecemos, você é a mulher pela qual 
		eu esperava e eu sou o seu homem. Sempre fui e sempre serei. – Mas o 
		meu passado, o dinheiro, as coisas que vou perder, a minha suposta 
		dívida... Quanto vai custar tudo isso? Você não é milionário. – Não 
		interessa. Dinheiro é o de menos. Foi feito pra se gastar. Vai e vem. E, 
		depois do Natal, você também vai procurar emprego, mocinha. Acabou a 
		moleza, certo? Vamos viver a nossa vida, com os nossos recursos e ter um 
		monte de crianças... Agora vamos. Estamos aqui há horas e já passou da 
		hora do neném aqui ir nanar... – disse ele com um sorriso, acariciando o 
		rosto dela. Mais 
		tarde, depois do amor, na cama dele, antes que ele pegasse no sono ela 
		perguntou: Ele riu: Leia Também: Linhas Tortas - a continuação dessa história, 15 anos depois | |