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| Linhas Tortas conto de Natal de Isabel Fomm de Vasconcellos | |
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		 (Caravaggio, 1607, Madona do Rosário, detalhe) | |
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		Messias e Magdala, abraçados no enorme terraço de seu apartamento, 
		olhavam as estrelas naquela noite clara de véspera de natal. -- 
		Pena que não decoram mais a Paulista como antigamente – comentou Magdala 
		quando se sentaram à mesa para cear. -- 
		Mas a avenida continua linda – respondeu Messias – apesar da ciclovia. E 
		riram os dois. | |
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		-- Ah! E as árvores iluminadas em 
		todos os parques e edifícios! – Exclamou ela – E os corais! Os bancos 
		promoviam apresentações de corais, tanto na hora do almoço quanto à 
		noite. Era muito lindo.... Eu me lembro que um coral cantava enquanto eu 
		te contei... -- 
		Sim, quando você me contou que era uma menina de programa, que tinha se 
		apaixonado pelo luxo de São Paulo, da Oscar Freire em particular – e, 
		aqui, riram os dois –vendo tudo na TV, na sua cidadezinha do interior e 
		que caíra na mais velha armadilha dos cafetões – interrompeu ele. -- 
		Mas nunca me senti ludibriada, enquanto trabalhei para o Demóstenes – 
		você sabe. – Ele era meio cretino, mas nunca me enganou. -- 
		Como não enganou? – Exclamou Messias – e aquela história de que você 
		devia para ele, quando você quis ir embora... -- 
		Ora você mesmo me disse que aquilo foi apenas uma tentativa de me manter 
		na casa. Mas eu já era, de fato, meio velha para ele. -- 
		Sim, ele já tinha explorado você por quatro longos anos! – Disse ele. -- 
		Não exagere, Messias. Eu topei o esquema que ele me propôs quando 
		cheguei aqui. -- 
		Estou me lembrando agora – disse Messias – de que, no ano em que nos 
		conhecemos, a CET teve que desviar o trânsito de carros da Paulista para 
		dar espaço aos pedestres que, à noite, vinham ver os enfeites da Avenida 
		e que, naquela noite, não cabiam nas calçadas, foi preciso liberar uma 
		pista de rolagem de automóveis para eles. Em que ano foi mesmo? -- 
		Não finja que não sabe! Ele 
		riu: -- Foi em 2002! -- 
		Quinze anos! – Disse ela. Quinze anos... E aqui estamos, lutamos para 
		ter esse apartamento, o conforto em que vivemos, para comprar a sua 
		rádio na Internet.... Você lembra como ninguém acreditava? -- 
		Era preciso ser cego para não acreditar que todos os veículos de 
		comunicação, como nós 
		os conhecemos da metade do século XX à primeira década do XXI se 
		manteriam.... Estava claro que tudo, até a poderosa Rede Globo daquele 
		tempo, acabaria na web. -- E 
		você saiu na frente! -- 
		Sempre saí na frente, Mag, desde que era criança. -- 
		Bem – suspirou ela – Eu te contei a minha história apenas algumas 
		semanas depois de te conhecer e me lembro bem que você me disse: “Um dia 
		te contarei a minha história, afinal alguém já disse que só quem não tem 
		pecado deve atirar a primeira pedra. ” Nunca me esqueci. O tempo passou. 
		Compramos a rádio, o apartamento, demos duro para educar nossa filha, 
		para manda-la estudar no Exterior e mal deu tempo, nesses quinze anos, 
		de voltar ao assunto. Agora que é de novo Natal, como quando nos 
		conhecemos, e estamos só nós dois aqui, você vai me contar? Vai me dizer 
		afinal qual é esse pecado que te impedia de jogar em mim a primeira 
		pedra? 
		Messias sorriu. E começou a contar. -- Eu 
		te disse que nasci no interior e fiquei órfão muito cedo. É verdade. Mas 
		eu não te disse que fui criado pelos padres e, menino, fui coroinha. 
		Depois entrei para o seminário e foi lá que eu tive a melhor educação 
		que um garoto pobre pode almejar no Brasil. Estava para me ordenar, era 
		um seminarista de esquerda, inspirado em Leonardo Boff e na teologia da 
		libertação quando, numa greve, na porta da fábrica, percebi que tudo 
		aquilo era uma mentira. Os padres. A Igreja. Até mesmo os sindicatos e a 
		CUT... Tudo não passava de uma luta pelo poder, travestida, como nos 
		casos citados, em altruísmo e amor ao próximo. De fato, todos os que ali 
		estavam, lutavam pela ascensão social e, em última instância, pelo 
		poder. Poder do dinheiro, da riqueza, da posição social. Mal pude dormir 
		naquela noite. Meus pais haviam sido mortos, em circunstâncias nunca bem 
		explicadas, lutando em guerrilhas contra a ditadura militar. Você sabe, 
		eu nasci em 1970 e os padres haviam conseguido impedir que eu fosse mais 
		um filho de militantes políticos “doados” pela repressão a algum casal 
		de militares sem filhos, estéril. Sempre endeusara meus pais, achava que 
		eles eram heróis da resistência. Mas, com o passar do tempo e com a 
		maturidade, percebi que eles estavam tão equivocados, no seu sonho, 
		quanto qualquer um. Era 1989, o muro de Berlim caíra e revelara ao 
		planeta o atraso do mundo socialista, a mentira do mundo socialista, o 
		doping dos atletas, a elite política dominante usufruindo do que a 
		maioria do seu povo nem podia sonhar em usufruir... enfim, tudo aquilo, 
		um mundo de mentira. E eu ia ser padre! Padre de esquerda! Mais um 
		mentiroso num universo de mentirosos ou talvez – digo isso por 
		generosidade – de auto iludidos. Então comecei a refletir. O mundo era 
		realmente dos ricos, dos poderosos. E os poderosos não eram os 
		políticos. Os políticos eram as marionetes dos poderosos. Fiquei uma 
		semana insone. E decidi que não queria, de jeito nenhum, ser padre. Eu 
		queria ser rico. Mas como? O caminho possível para mim era o caminho dos 
		pobres que enriqueciam rapidamente traficando drogas, roubando bancos, 
		era o caminho dos bandidos. -- 
		Mas..., mas de bandido você nunca teve nada! – Retrucou, assustada, 
		Magdala. -- 
		Nem Jesus. No entanto, foi crucificado junto a dois ladrões – riu ele. – 
		Mas não me interrompa, senão não conseguirei terminar. -- 
		Isso foi só um desejo, não é? Você não virou bandido, né? 
		Messias riu. 
		Magdala riu também: E 
		então Messias contou a ela que, certa tarde, quando ele estava 
		mergulhado naquelas dúvidas e na profunda decepção que se seguira à 
		compreensão de que, afinal, seus pais haviam lutado por nada, estava na 
		Igreja do seminário onde, ajoelhado, tentava recuperar a fé, orando a 
		Deus por um milagre, um sinal, qualquer coisa que lhe indicasse que 
		deveria permanecer no trabalho cristão, que deveria se ordenar. 
		Implorava, na verdade, a Deus que lhe mostrasse serem seus novos 
		pensamentos apenas mais uma tentação e uma máscara do Maligno, quando 
		entrou na nave um homem desesperado, correndo e, vendo Messias ali, se 
		dirigiu a ele: -- 
		Padre! Padre! Você é a minha última esperança, você precisa me ajudar. 
		Eles estão atrás de mim, eu vou morrer, padre, eles vão me matar. 
		Messias ia dizer que era apenas um seminarista, mas não disse e tratou 
		de enfiar o homem dentro do primeiro confessionário que viu pela frente. 
		Ficaram então, em posição invertida: ele do lado de fora, o homem do 
		lado onde deveria estar um sacerdote. Foi aí que disse o homem: -- 
		Padre, já que estou aqui, me ouça em confissão! Se eu morrer, pelo 
		menos, morro em paz com Deus. O 
		homem então contou a ele que era um dos poucos taxistas independentes 
		que ainda existiam em São Paulo e que, um dia, entrara no carro dele 
		alguém do tráfico de drogas que acabara convidando-o para ser um 
		“taxista limpo”, ou seja, um taxista em que os traficantes pudessem 
		confiar e usar para aquilo que precisassem, fosse transportar alguém que 
		não podia ser reconhecido ou para levar as mulas ao seu destino, como 
		aeroportos e rodoviárias. Pagavam bem. Ele topou. Trabalhou para o 
		tráfico durante alguns anos e esses anos foram suficientes para que ele 
		percebesse seu erro. Os traficantes exigiam lealdade absoluta e a 
		punição para a traição era a morte. Ele estava preso, queria se 
		libertar. Vivia angustiado, tinha pesadelos, sonhava que, ao chegar em 
		casa, encontrava sua mulher e seus filhos mortos, sonhava que a filha 
		virava amante de um deles, que o filho se tornara traficante... enfim, 
		estava vivendo no inferno. Uma noite, ao acordar em plena madrugada, 
		gritando, suando em bicas, a mulher – ah, a Leida é a melhor esposa que 
		alguém pode querer – disse então o homem – a mulher lhe obrigara a 
		contar toda a história e, horrorizada, sugerira que ele procurasse um 
		tio-avô distante que ela tinha e que era coronel do exército. O tal 
		coronel levara o homem até um investigador do DENARC, o departamento de 
		prevenção e repressão ao narcotráfico e ele dera todo o serviço, em 
		troca de proteção policial. A polícia estava providenciando a inclusão 
		de toda a sua família no serviço de proteção à testemunha, nem ele sabia 
		para onde iria se mudar. Mas, há pouco, entrara alguém no seu taxi e 
		dissera a ele: “Os homens já sabem que você dedurou. Você vai morrer. ”
		 -- Aí 
		– continuou o homem, em soluços desesperados – Aí eu vi essa Igreja e 
		parei o táxi, abri a porta e saí correndo... -- Bom – disse Messias à Magdala, que o escutava quase sem piscar – Resumo da ópera: peguei o nome do sujeito, o endereço, dei uma batina a ele, mandei ele se esconder numa cela do seminário que estava vaga e fui atrás do táxi. Por sorte, ele abandonara o carro numa viela, no meio fio. Estava aberto, chave no contato. Entrei e saí dirigindo. Rodei uns trinta minutos, estava levando uma passageira pra Mooca quando veio a mensagem pelo rádio: 
 -- Severino, está na escuta? 
 Eu 
		respondi: -- Sim. -- O 
		escritório central quer você lá hoje, às cinco horas.  
		Respondi: OK. -- 
		Mas você está ciente do novo endereço? -- 
		Pode falar. -- 
		Ele me deu um endereço. Era na periferia, na zona sul. Eu apareci lá às 
		cinco da tarde. Era inverno. Já estava escurecendo. Cercaram o táxi, me 
		tiraram lá de dentro, já na porrada e fazendo um monte de perguntas. Eu 
		convenci eles de que o Severino era meu amigo e que aparecera na minha 
		casa, dizendo que tinha que sumir e que era para eu ficar com o carro e 
		com o trabalho dele. Para encurtar a história, foi assim que eu virei 
		traficante. Nunca mais voltei para o seminário, nunca mais ouviram falar 
		de mim por lá, nunca mais eu soube o que foi feito do Severino e de sua 
		família. No táxi, eles puseram fogo. E eu passei a viver lá, na 
		periferia, trabalhando para eles. Primeiro fazendo trabalho de olheiro, 
		depois pequenas entregas, mas fui galgando posições no grupo até virar o 
		responsável pelos negócios naquele setor. Mudei para um apartamento num 
		bairro chique, tinha tudo do bom e do melhor. As melhores mulheres 
		também. Aqui 
		Magdala deu um soco, brincalhão, no braço dele. -- 
		Você também teve alguns melhores homens – riu ele. E continuou: -- Tinha 
		tudo o que eu achara que me faria feliz: dinheiro, poder. Mas, um dia, 
		percebi que não era feliz. Lembrei de uma moça que eu conhecera numa 
		balada e que tinha me dito que eu deveria ser radialista, que tinha uma 
		voz linda, e me dera um cartão da rádio onde ela trabalhava. Fui lá. Fiz 
		um teste. Passei. Deveria começar, no mês seguinte, lendo boletins de 
		notícia nos intervalos dos programas. Saí da rádio e fui atrás dum 
		falsificador que me devia uns favores. Ele me arrumou novos documentos, 
		nova identidade e até um passado bancário. Custou uma nota, mas dinheiro 
		não era problema. Ainda com o dinheiro do tráfico, abri uma conta num 
		banco na Paulista, com meu novo nome. Aluguei aquele apartamento onde eu 
		morava quando nos conhecemos. Comecei a trabalhar na rádio, abandonei 
		tudo o que eu tinha e desapareci sem deixar rastro. Um dia inventei que 
		levara um soco, numa briga e precisara consertar o nariz. Na verdade, 
		foi um cirurgião plástico que tratou de mudar o meu nariz e, aos poucos, 
		fui mudando. Pintei o cabelo, fui fazendo pequenos preenchimentos no 
		rosto, com o cirurgião e, na rádio, fui fazendo carreira. Arranjei 
		patrocínios, acabei conquistando meu próprio programa e, dois anos 
		depois, vi uma moça caminhando pela avenida Paulista... -- 
		Meu Deus! – Exclamou ela – Isso é verdade, mesmo? Você não está 
		inventando essa história? Nunca pude desconfiar que você foi criado num 
		seminário, que ia ser padre e virou traficante! É uma história 
		inacreditável! Como o tráfico nunca te descobriu? Você numa rádio! Nem 
		pela voz... -- 
		Minha voz, empostada, é bem diferente, não é? Além disso eles ouvem 
		rádio de pagode, essas coisas. Eu trabalhava numa rádio de elite. Ademais, 
		eu não tinha porque sumir. Todos confiavam em mim. Devo ter sido um 
		mistério. No início, eles devem ter me caçado, tentado me encontrar, 
		imaginando que eu tivesse delatado algum esquema e por isso sumira. Mas 
		eu não delatei ninguém. Ninguém caiu. A polícia não descobriu nenhum 
		carregamento ou mula, a não ser por suas próprias investigações, e eles 
		tem como saber isso, se alguém dedurou. Eles têm gente infiltrada. -- E 
		o falsificador? Ele sabia em quem você se transformara. -- O 
		negócio dele é nunca revelar nada a ninguém. Todos sabem que, um dia, 
		podem precisar dele e, se o forçarem a dedurar alguém, podem perder os 
		seus serviços. Aí entra o código de ética da bandidagem. Proteger o 
		falsificador, para poder sempre contar com ele. -- 
		Que história – suspirou Magdala. – Nem estou acreditando. Mas então eu 
		sou casada com alguém que não existe de verdade. Sou casada com Messias 
		Vito dos Santos Oliveira, um personagem. Como é seu verdadeiro nome? -- 
		Pedro Paulo Soares Miranda – respondeu ele rindo. – Mas não conte para 
		os padres. Nem para os traficantes!  -- 
		Nem para os vizinhos – riu ela. Imagine se alguém aqui no condomínio 
		desconfiasse que o casal 20 que mora na cobertura, o radialista famoso e 
		badalado, é um ex seminarista e um ex traficante! Ele 
		sorriu: -- E que a mulher dele é uma ex menina de programa! -- 
		Mas você nunca foi um bandido de verdade, né? – Indagou ela. Eu nem sei 
		ainda se acredito ou não nessa história. Afinal, você é um profissional 
		super sério e dedicado, seu programa tem um lado social e político 
		importante, você ajuda um montão de gente, de ouvintes, de entidades.... 
		É um trabalho cristão! Você é um excelente marido e tem sido um pai 
		maravilhoso para a nossa filha. Traficantes são cruéis, sem escrúpulos e 
		assassinos. Você não é nada disso! Ele 
		olhou bem dentro dos olhos dela: Ela 
		se levantou, nervosa. -- 
		Foi você que pediu para eu contar – respondeu ele calmamente. E até 
		estava rindo há um minuto atrás. O que houve? Vai atirar a primeira 
		pedra? Ela 
		desabou no sofá e ele veio sentar-se ao lado dela. Ele 
		caiu na gargalhada e a abraçou: -- 
		Mas é – respondeu Magdala – Muito mais cristão do que o meu que sou 
		apenas uma blogueira que diz coisas fúteis sobre moda e beleza na 
		Internet e ajuda as ricaças a se produzirem com classe. -- 
		Coisa que, afinal – riu ele – você aprendeu com o Demo, no tempo em que 
		era garota de programa. -- 
		Pois é – disse ela, subitamente séria – E você aprendeu com os padres, a 
		sua atitude cristã vem deles, do seminário. -- 
		Mas os padres – retrucou ele – também lutam pelo poder, há os que são 
		até pedófilos, outros são alcoolistas e a própria Igreja desvirtuou em 
		muito a palavra de Cristo, em nome dele cometeram assassinatos, 
		injustiças, um horror! -- 
		Eles são apenas homens – interrompeu ela. – No entanto veja que homem 
		está sentado hoje no trono de Pedro. Um verdadeiro franciscano. Um homem 
		político habilidoso que está, sem revoluções, revolucionando a igreja, 
		tirando a lama do cristal da palavra de Jesus! Os padres, os “seus” 
		padres, são homens que também fazem o bem e que ensinaram a você a 
		filosofia cristã que hoje você pratica mais do que se fosse um deles. -- 
		Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas, meu amor! -- Disse ele, 
		calando a boca de Mag com um apaixonado beijo. Lá 
		fora, os sinos da Catedral chamavam os fiéis para mais uma Missa do 
		Galo. 
 nota da autora: esse conto de Natal é o complemento de outro, anterior, que se chama "Pedidos de Natal - Magdala e Messias" e foi publicado no livro "Primeiro Chegam os Anjos - contos de Natal de Isabel Fomm de Vasconcellos" - A Nave de Belém,conto de Natal 2018, também tem Magdala e Messias como protagonistas. | 
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