Índice:
Capítulo 10 -
No Tempo Certo
Capítulo 11 - O Tempo
Fora do Tempo
Capítulo 12 - Tudo É Possível
Capítulo 13 - O Legado de George
Capítulo 14 - Superação
Capítulo 15 - 1919
Capítulo 16 - Tempo Não Linear
Capítulos 17 a 24
Capítulos 25 a 31
Capítulo 10 –
No Tempo Certo
Susana e Leo ficaram até bem tarde no Castelo. Ela mostrou tudo a ele,
as piscinas, com seu bar exclusivo, o pub (onde antes era a adega), as
quadras esportivas, o ginásio com sua piscina coberta, a área dos
quiosques entre as árvores, a casa de barcos, as quadras de tênis, os
salões de festa e, de propósito, deixou para o fim o Castelo, a casa
como fôra construída pelos pais de George e Evelyn e que nunca tinha
sido reformada. O hall de entrada, a sala principal com sua lareira e
escadaria e mezanino com um púlpito, a sala de vidros. Depois, o segundo
andar. Os quartos e banheiros, que hoje eram, o do frente, sala de
jogos, o do fundo, sala de bilhar, com seu enorme terraço que ficava
exatamente sobre a sala de vidros e o pequeno quarto do meio, onde hoje
funcionava a secretaría do clube, onde ela ficara hospedada, na sua
viagem ao passado. Depois galgaram os grandes degraus da escada estreita
que levava à torre. De lá, descortinava-se, nas janelas em 360 graus e
dos dois pequenos terraços em meio círculo, todo o entorno do Castelo,
toda a vasta península verde e, para além, as margens da represa do
Guarabitinga, outrora virgens, hoje coalhada de prédios e de loteamentos
habitados. Leo disse, com um suspiro:
-- Então foi aqui que meu trisavô escreveu seu livro premonitório...
-- Sim – respondeu ela. – Ele transformou a torre em escritório...
-- Como você sabe disso? – riu ele.
-- Imaginei – respondeu rápida, mas morrendo de vontade de contar a ele
que estivera ali, em 1910, no escritório onde George escrevia seu
romance. Porém, sabia que ele jamais poderia acreditar nela. Talvez
acreditasse, se ela dissesse coisas que estavam no livro. Mas, mesmo
assim, ele julgaria que, de alguma maneira, ela tivera acesso a um dos
500 exemplares editados e, por isso, agora brincava com uma hipotética
viagem ao passado.
Calou-se. Talvez um dia...
Agora, quase 11 da noite, dirigindo seu carro de volta à casa, pensando
que, afinal, amanhã seria segunda feira, 7 de janeiro de 2019, e que ela
ainda teria que, ao menos, antes de dormir, passar os olhos pelos autos
do processo que capitaneava e, cuja audiência principal seria às 15
horas. Pensava também em Leo. Ah, ela diria que o amava. Mas, de fato,
não era Leo quem ela amava, e, sim George. Ou seriam Leo e George apenas
duas versões da mesma pessoa, da mesma alma, no tempo? Nesse caso, seria
ela outra versão de sua bisavó, Carmen? Lembrou-se de que todos, no
fórum, no escritório, admiravam os textos de seus processos, sua
defesas... Todos comentavam que eram extremamente bem escritos,
diferentes do usual... Teria ela, apesar de ter optado pela carreira
jurídica, a mesma veia literária de Carmen?
Estava mergulhada nesses pensamentos, dirigindo no trânsito
congestionado, quando seu celular tocou. Era sua mãe.
-- Susana, minha filha – disse Isabel – estou há horas ligando pra você.
-- Desculpe-me, mãe, o celular estava descarregado. Acabo de carregá-lo
no pub do clube.
-- Enquanto você estava no clube, minha filha, seu pai passou mal.
-- O que houve? – perguntou ela já aflita.
-- Ele teve um AVC.
-- Meu Deus! – exclamou ela – já dirigindo o carro para uma transversal
e estacionando, para poder conversar – Como ele está, mãe?
-- Inconsciente, Susana, na UTI. Mas os médicos garantem que ele não
terá grandes sequelas porque corremos para o hospital a tempo.
-- Mas que espécie de sequelas, mãe? – perguntou ela, já em pânico,
pensando que seria terrível para seu pai, um homem de grande capacidade
intelectual, sofrer algum problema cognitivo.
-- Os médicos dizem que é cedo para afirmar qualquer coisa. Vamos
esperar.
-- Ele está no hospital do Morumbi?
-- Sim, nós estamos aqui. Mas não adianta você vir aqui, minha filha. Só
se pode entrar na UTI em horas determinadas. E, agora, é tarde da noite.
Eu vou dormir no quarto para onde ele será transferido quando sair da
UTI.
-- Mas eu vou assim mesmo, mãe. Vamos tomar um café juntas. Não vou
abandonar vocês num momento desses.
Quando desligou, Susana lembrou-se das fotos que fizera com George, no
cosmos dos vagalumes da grama do Castelo. Será que estariam ainda em seu
celular? Checou. Lá estavam. Numa delas, era possível ver as margens da
represa, em total escuridão, completamente diferentes do que eram hoje,
cercadas de prédios e casas e ruas iluminadas. Poderia ser uma prova
para Leo. Mas, ainda assim, fotos, hoje em dia, são manipuladas,
alteradas... Nem mesmo aqueles flagrantes seriam prova de que ela
estivera no passado, para Leo.
Bom, seja o que Deus quiser – pensou Susana – e saiu na Ponte da Cidade
Jardim, em direção ao hospital.
Capítulo 11 –
O Tempo Fora do Tempo
No
momento em que viu Carmen, George imaginou que aquela mulher não fosse
apenas fisicamente igual à Susana. Ele desejou que ela fosse a mesma
alma, num tempo diferente e que pudesse amá-la, como amava Susana,
porque seu amor estava presente, aqui e agora.
Sentou-se à mesa do chá, completamente transtornado, imaginando como
teria voltado no tempo, como seria possível que a viagem da Susana, de
2019 a 1910, tivesse sido afinal apagada da realidade em que ele se
encontrava agora. Foi então que Evelyn contou que tivera um sonho muito
estranho com uma mulher que viera do futuro.
-- Teria sido do ano de 2019? – perguntou Carmen com ar zombeteiro.
-- Bem... Não sei..., Mas, agora que você falou nisso – respondeu Evelyn
– penso que o sonho possa ter tido uma causa específica...
-- O livro que seu irmão está escrevendo! – riu Carmen.
-- Desculpem-me – fez George – mas causa-me espanto que as senhoritas, a
quem acabo de ser apresentado, saibam que estou escrevendo um livro...
Agora foi a vez de Úrsula rir:
-- Senhor George, graças ao entusiasmo de sua irmã, que o chama de Júlio
Verne Paulistano, toda a sociedade dessa província sabe que o senhor
está escrevendo um livro que se passa em 2019.
George corou. Jamais poderia imaginar que ele próprio fosse alvo das
futricas da sociedade local.
-- Não precisa ficar encabulado, meu irmão—disse Evelyn – Você tem muito
talento literário e isso deve ser reconhecido. Quando o livro for
editado, será um sucesso! – disse Evelyn.
-- Diga-me, Sr. George, como viveremos no Brasil do ano de 2019? –
perguntou Úrsula.
George ia abrindo a boca para responder, mas a irmã se adiantou:
-- Será, segundo George, um mundo de grandes avanços científicos e
técnicos. Os automóveis voarão pelos ares, as pessoas se comunicarão por
sofisticados aparelhos telefônicos sem fio, muito diferentes dos de
hoje, e poderão se ver, umas as outras, em pequenas telas, como hoje
temos a grandes telas de cinema.
As moças riram.
-- Serão todos felizes nesse novo mundo, então? – perguntou Carmen.
-- Longe disso – respondeu George – O planeta sofrerá as consequências
de todas essas novas invenções. Enormes e complexas indústrias serão
erguidas em todos os continentes. A terra abrigará a espantosa cifra de
mais de 7 bilhões de habitantes, todos eles precisando e exigindo bens
que essas indústrias fornecerão. A matéria prima para tantos produtos
esgotará a terra, assim como a produção de alimentos necessários para
todos esses seres humanos, esgotará também os solos. Espécies animais
serão extintas. E o planeta acabará por revoltar-se porque, afinal, toda
a energia necessária para a fabricação de tantos e tantos bens de
consumo, isso sem contar a imensa quantidade de veículos, como os nossos
carros, funcionando à base de combustíveis extraídos da terra,
principalmente o petróleo e, ainda, as milhares e milhares de chaminés
da milhares e milhares de fábricas, acabarão por sujar o ar que
respiramos e causarão um grande aquecimento nas temperaturas médias da
Terra. Esse aquecimento derreterá, aos poucos, as geleiras dos mares,
causando inundações nas cidades costeiras, maremotos, com ondas imensas
e devastadoras; terremotos serão frequentes, dada a extrema manipulação
dos terrenos...
As moças olhavam para ele, assustadas.
-- Deus nos livre viver num mundo assim! – exclamou Úrsula.
-- George! – disse Evelyn, não sem certa irritação na voz – Eu li toda
essa parte do livro que fala nas catástrofes naturais, mas você não
estava atribuindo essas catástrofes ao progresso técnico e científico e
muito menos falava nesse número absurdo de pessoas sobre o planeta...
George quase respondeu: “É que eu ainda não sabia...”, mas lembrou-se
imediatamente que não poderia explicar como soubera. Então disse:
-- É, minha querida irmã, porque eu ainda não escrevi essa parte, apenas
a imaginei.
-- O senhor – disse Carmen – como o fez Júlio Verne em sua obra “Da
Terra à Lua” e H.G. Wells no livro “Primeiros Homens na Lua”, também
imaginou que, em 2019, a humanidade estaria viajando pelo espaço
sideral? Inclusive, baseado nesses dois livros, o seu xará francês, o
cineasta Géorges Mélliès, lançou, com grande sucesso, há alguns anos,
creio que em 1902, o seu filme de cinema “Viagem à Lua”. O senhor teve
oportunidade de ver essa película?
-- Sim – respondeu George – eu estava em Paris quando esse filme foi
lançado. Foi um grande sucesso! Mas, no meu livro, o homem chegou à Lua
lá pelos anos 1960 ou 70 e, depois disso, não alcançou nenhuma conquista
tão espetacular. Em 2019 (George sabia, pois Susana lhe contara, quando
estiveram naquela bolha temporal) existirão, creio eu, satélites, como a
nossa Lua, mas artificiais e bem pequenos, se considerarmos o tamanho da
Lua, enviados ao cosmos pelos homens, onde algumas pessoas especialmente
treinadas, passarão temporadas lá, para estudar os mistérios do
Universo. Mais longe que isso, porém, apenas máquinas inteligentes irão.
Máquinas que transmitirão imagens das estrelas distantes para outras
máquinas aqui na Terra.
-- Que coisa impressionante de se imaginar! – exclamou Úrsula.
-- Paradoxalmente – disse Carmen – o senhor George imagina um mundo onde
a humanidade domina a natureza e, ao mesmo tempo, sofre com as
catástrofes naturais causadas por esse mesmo domínio da natureza.
Entendi corretamente?
-- Perfeitamente – disse George com um sorriso. – Mas permita-me chamar
atenção das senhoritas para o maravilhoso espetáculo do crepúsculo sobre
as águas. Vejam como o céu e a água estão completamente vermelhos.
As moças, que até então só tinham olhos para George, voltaram-se em suas
cadeiras para observar a paisagem pelas enormes janelas da sala de
vidro.
-- Sim, é mesmo maravilhoso! – exclamou Carmen – E que privilégio têm o
senhor e sua família em morar aqui, no alto da colina, nessa verde
península e, ainda por cima, num Castelo!
-- E, daqui a pouco, assim que o sol finalmente se esconder, chegarão
até nós as estrelas! – exclamou George.
Carmen olhou para ele, intrigada. Ele riu e logo explicou:
-- São os vagalumes. Logo depois do crepúsculo, em dias quentes como
hoje, esses insetos, em bando, invadem toda a extensão do gramado que
desce até a praia. Voam baixo, quase se pode tocá-los, estão à altura
dos nossos olhos. Então, é como se caminhássemos no céu, entre as
estrelas. Se as senhoritas quiserem ver de perto, terei prazer em
acompanhá-las, daqui a pouco, por um passeio pela grama...
-- Bah! – fez Úrsula – Eu agradeço a sua gentileza, mas onde existem
insetos, certamente existem também mosquitos. Tenho horror deles.
Prefiro ver os vagalumes daqui mesmo. Além disso, não quero me atrasar
para o jantar lá em casa e ainda tenho que ver os vestidos que Evelyn
ficou de me mostrar, os que ela trouxe da Europa no ano passado. Estou à
procura de inspiração, de algo que fuja dos modelos atuais, bem feitos é
verdade, mas tão maçantes, da Madame Celina.
-- Gostaria de me acompanhar? – perguntou George à Carmen.
-- Mas é claro! – respondeu a moça – Diferentemente de Úrsula, não tenho
medo de insetos!
Todos riram.
Lá fora, observando Carmen que rodopiava pela grama, como a dançar com
os vagalumes, George pensou, não sem amargura, que os olhos dela
brilhavam da mesma maneira que ele vira brilhar os olhos de Susana... E,
Deus Meu! – pensava ele – Como são parecidas as duas!
Capítulo 12 – Tudo
É Possível
Quando Susana chegou ao hospital encontrou sua mãe profundamente
envelhecida. Como se a dor e a preocupação com seu marido, a quem ela
amava profundamente, tivessem passado por cima de todas as plásticas,
cremes anti-idade, muita atividade física e tratamentos estéticos com os
quais Isabel parecia, do alto dos seus 68 anos, jovem e cheia de
vitalidade.
-- Mãe, os médicos já têm um prognóstico? – perguntou.
-- Sim. – respondeu Isabel – Eles dizem que seu pai terá que se submeter
à muita fisioterapia para recuperar os movimentos. Mas já sabem também
que não aconteceram, graças a Deus, danos cognitivos. Seria uma coisa
inimaginável e terrível se o prestigiado Professor Gaetano se visse
reduzido a um vegetal... Eles agora mapeiam o cérebro e sabem quais
áreas foram afetadas pelo AVC. É interessante com o nosso cérebro é
compartimentado. Uma área é a da fala, outra dos movimentos, outra da
cognição, outra da memória...
E outra, da percepção temporal – pensou Susana, mas não disse.
-- Amanhã de manhã ele será transferido para o quarto. —Continuou Isabel
-- Ficará em observação e, depois disso, terá alta. Poderemos levá-lo
para casa, mas ele não irá andando. Andar, só depois de muita
fisioterapia – disseram os médicos.
-- E os outros movimentos? – perguntou Susana.
-- Também comprometidos. Vamos ter que usar de muita paciência... Já
contratei fisioterapeuta e cuidadores para ele, ele não conseguirá fazer
as atividades básicas de higiene sem ajuda.
-- Meu Deus! – exclamou Susana – Ele vai se sentir humilhado...
-- Não sei – disse Isabel – Seu pai é muito forte e, antes de se
humilhar, sentir-se-á desafiado. Ele vai superar o desafio, como sempre
os superou a todos, na vida.
-- Ele irá sim. Tenho certeza. Mãe, mudando de assunto, eu estava no
clube hoje e, de repente, me ocorreu que eu nunca soube como nós fomos
parar lá... Parece que, desde que nasci, frequentei o Castelo..., mas
como foi que começou?
Isabel riu:
-- Seu avô, meu pai, Alfredo Fomm de Vasconcellos, que, como você está
cansada de saber, foi um pioneiro nas artes cinematográficas, foi, como
convidado, ao Castelo, em 1937, e lá, fez um dos seus primeiros filmes.
Ficou encantado com o lugar. Vinte e dois anos depois, soube que aquele
Castelo se transformara em um clube. E correu para comprar um título.
Você sabe que os títulos de sócios proprietários já estão hoje na casa
dos 11 mil, embora nunca passem de 2 mil, é que novos sócios têm novos
números, os cancelados não retornam. Nós somos número 630... Desde 1959
somos sócios, já são 60 anos...
-- Então o título do meu avô passou para você...
-- E eu o passei para o seu pai, assim nossa família continuou lá...
-- E como o Castelo se transformou em clube, você sabe?
-- Sim. Em 1933 o proprietário original, que o tinha construído, senhor
Meyer, morreu. A família vendeu o Castelo apenas em 1952 para um
empreendedor, o mesmo que construiu o bairro de Interáguas. Este o
alugou a uma missionária austríaca que instalou lá um colégio. Mas o
homem tinha dívidas com um Banco que tomou dele a propriedade. O banco
era dono do Clube Piratini, um clube social muito popular nos anos 1940
e 50. Assim, resolveram fazer daquela propriedade, um clube e fundaram o
Clube do Castelo em 25 de agosto de 1959. E seu avô logo comprou um
título...
-- Sim – disse Susana – e você era uma menina... Cresceu no clube,
depois eu mesma, cresci também no Castelo... É claro que eu sempre soube
disso, mas parece que só agora estou tomando consciência de como esse
local está presente em nossas vidas, como se fosse o quintal da nossa
casa.
-- O que houve hoje no Castelo? – perguntou Isabel, intrigada.
-- Nada, não, mãe... Por que?
-- Porque você está muito interessada numa história pela qual jamais
demonstrou interesse algum...
-- Bom, eu conheci hoje lá o George... quero dizer o Leopoldo Alfredo
Meyer, descendente direto do homem que construiu o Castelo no início do
século XX, logo que a represa do Guarabitinga foi criada. Esse George,
era o filho do sujeito que construiu o Castelo e ele escreveu um livro,
ficção científica, que se passa exatamente no ano de 2019.
Isabel deu um tapa na própria coxa:
-- Ah! – exclamou ela – Eu tinha certeza que alguma coisa de diferente
tinha acontecido lá hoje...
-- Mas não foi só isso... Mãe, você vai achar que eu estou louca se eu
te contar..., No entanto, sempre te conto tudo, agora que não sou mais
adolescente ou jovem, que já sou quase uma quarentona e estou mais
próxima de você...
-- Obrigada pela parte que me toca! – disse Isabel, zombeteira.
-- Você tem a cabeça aberta, é escritora, Rosacruz, sabe que a vida é
mais que isso...
-- Me conte logo – respondeu a mãe, já impaciente – Não precisa ficar
enrolando...
-- É que o meu domingo, hoje, mãe, durou 15 dias.
-- Como assim? Você viveu um dia tão intenso que pareceu ser duas
semanas?
-- Foram duas semanas, mãe. Eu viajei no tempo e...
O sol já despontava no horizonte, pelas janelas do, agora vazio,
restaurante do hospital quando Susana terminou de contar tudo à Isabel.
-- Minha filha! – exclamou ela – Isso dá um livro!
-- Cruzes, mãe! Eu te conto a aventura mais louca de toda a minha vida e
você só pensa em transformá-la em livro?
Isabel riu:
-- Vou escrever essa história, sim. É maravilhosa! Mas e o tal Leopoldo
então é mesmo a cara do bisavô dele?
-- Como eu sou a cara da minha bisavó Carmen...
-- Ah, minha filha, então vocês dois são as mesmas almas que habitaram
os corpos de seus respectivos bisavós. E você, então, finalmente
encontrou o amor?
-- Sim, mãe. Mas não é o Leopoldo. É o George que eu amo, e ele já
morreu, ele já viveu toda uma vida sem mim e eu não tenho mais como
encontrá-lo...
-- Ah, mas você já o encontrou. Você vai ver que amará esse tal Leopoldo
exatamente como amou o bisavô dele e, por sua vez, aposto que o bisavô
dele se engraçou com a sua bisavó Carmen.
-- É verdade aquele velho boato que corre na família, que Carmen teve um
amante antes de se casar com o meu bisavô, Antonio Expedito... Meu Deus!
– exclamou Susana de repente – Já são quase 6 da manhã, eu tenho uma
audiência às 3 da tarde e preciso me preparar... Mãe, desculpe, tenho
que ir voando pra minha casa.
-- É melhor não ir voando, afinal, você pode, sem querer, voar de volta
para os braços do George em 1910... – respondeu rindo Isabel, recebendo
no rosto o beijo apressado de Susana.
Depois, ainda cercada pelo encanto e pela magia da história que ouvira
da filha, Isabel encaminhou-se para o quarto para onde seu marido, Mário
Gaetano, seria levado às primeiras horas da manhã. Se era possível
viajar no tempo, não seria impossível recuperar-se de um AVC e ela sabia
que Mário não era homem de se deixar abater. Ele venceria, tinha
certeza, ele venceria!
Capítulo 13 – O
Legado de George
Leopoldo, quando voltou para casa, naquela noite de segunda feira,
depois de um dia relativamente difícil na agência de publicidade de sua
família, bastante contrariado pela resistência que sentia nos sócios em
aceita-lo na direção, substituindo seu pai que falecera recentemente,
bateu os olhos no livrinho do seu bisavô, George Meyer, que deixara
jogado sobre a mesa de centro da sala. Estava sozinho no grande casarão
da família. A mãe, dizendo-se abalada pela morte súbita do marido,
decidira se refugiar na casa de Campos do Jordão. As irmãs, àquela hora
da noite, deveriam estar em suas respectivas universidades. Evelyn
Cristina cursava direito na USP, na São Francisco e Augusta Marta,
psicologia na FMU. O jantar foi servido e ele comeu, sozinho, na grande
mesa de 12 cadeiras, com a cara enfiada no livro do bisavô. Leu-o
inteirinho, novamente. O enredo era incrivelmente premonitório, mas o
que mais intrigava a Leo não era nem isso, mas sim a introdução. Nela,
George falava do Castelo de sua família, do escritório que montara na
torre para escrever em paz e na mulher dos seus sonhos, Susana, que,
segundo ele viajava no tempo, aparecendo-lhe em sonhos, para lhe contar
fatos da vida no planeta, fatos que ainda estavam por vir. A viajante,
explicava George na introdução, era descendente da misteriosa mulher da
sociedade local que ela amava torridamente, mas que estava comprometida
com outro homem, um noivo muito mais conveniente aos grandes negócios da
família dela do que George, um simples industrial, descendente de
imigrantes austríacos que fizeram fortuna trabalhando com tecidos e,
mais tarde, fabricando-os.
Foi então que ocorreu a Leo, procurar pelo antepassado na Internet. Ele
lembrou-se que o irmão do seu pai havia construído um site com a
história da família. Acontecera mesmo um jantar, que reuniu grande parte
de todo o clã, inclusive parentes de fora de São Paulo, para o
lançamento do tal site. Leo não aparecera no jantar, achava tudo aquilo
pouco mais que uma palhaçada, quem se importaria com a história de sua
própria família? Agora, porém, arrependia-se. Deveria ter ido. Deveria
ter se interessado. Nesse momento, estava completamente fascinado pela
história de George, seu bisavô, pelo livro que escrevera, pelo Castelo e
também por Susana... a moça que ele encontrara e que, por uma enorme
coincidência (mas coincidências não existem, refletia ele) era a cara da
mulher da capa do livro e tinha o mesmo nome da heroína do livro de seu
bisavô.
Ligou o laptop no escritório e lá estava, a biografia de George Meyer,
com os dados que seu tio recolhera da memória da família e da FIESP, já
que os Meyer tinham sido grandes industriais da área têxtil no começo e
até a metade do século XX, mais precisamente até os primeiros anos da
ditadura militar.
De repente, deu de cara com a foto de George Meyer. Um homem elegante e
extremamente parecido com ele próprio, Leo. George, no entanto, nascera
na Áustria em 17 de julho de 1882 e viera para o Brasil, com seus pais e
irmã, no começo do século XX, onde o patriarca dos Meyer se
estabelecera, primeiro como comerciante de tecidos e depois como
industrial.
Vinha, em detalhes, a história da Represa do Guarabitinga, inaugurada em
1908 e, depois, a construção do Castelo, numa das margens mais
privilegiadas, por sua localização e flora, da represa.
George jamais se casara e morrera muito jovem, com apenas 37 anos, num
trágico acidente de automóvel. Era fato conhecido em toda a provinciana
cidade de São Paulo, à época, que George e a escritora Carmen Fomm
haviam mantido um tórrido romance, à revelia de suas famílias, já que a
moça estava prometida a um jovem rebento do prestigiado clã dos Campos
Expedito, milionários descendentes de antigos Bandeirantes, legítimos
paulistanos quatrocentões. Carmen, porém, só se uniria a Antonio
Expedito depois da morte de George. As más línguas locais diziam que o
primeiro filho do casal era, na verdade, filho de George e não de
Antonio. Nesse caso – concluía Leo, que descendia diretamente de Evelyn,
a irmã de George, esse seu tio-avô teria deixado um parente seu, um
parente dos Meyer, bastardo, mas carregando o nome dos Campos Expedito.
Hoje, o maior bem dos descendentes dos quatrocentões milionários, era o
nome. As gerações que se sucederam nessa família tradicional trataram de
ir dissipando todo o imenso patrimônio familiar. Leo nem poderia
desconfiar que Susana, a jovem mulher que conhecera no dia anterior, no
Castelo, era descendente de Carmem Fomm e de Antonio Campos Expedito. Só
quando foi procura-la no Facebook, pelo nome que ela lhe dera, Susana
Gaetano, é que viu que ela era filha de Isabel Fomm de Vasconcellos
Campos Expedito Gaetano, também escritora como sua xará antepassada, e o
pai de Susana, marido de Isabel, era o Professor Mário Gaetano, que dera
aulas à Leo na escola de administração da Fundação Getúlio Vargas. E
ainda existia quem acreditasse que o mundo não era pequeno!
Leo descobriu ainda que o livro de ficção de George Meyer fôra editado,
pelos pais deste, após a sua morte, e seus quinhentos exemplares
distribuídos entre familiares e amigos próximos. No entanto – refletia
ele – se o filho de Carmen fosse mesmo de George, isso fazia com que
ele, Leo, e Susana, fossem afinal, primos de sangue, ainda que
distantes.
São Paulo, década de 1920
George comprara um terreno na margem oposta ao Castelo, na Guarabitinga
e construíra um bangalô que ficava a cargo de uma família de caseiros,
empregados de absoluta confiança da família Meyer e fiéis ao patrãozinho
George. Mandara escavar um pequeno canal, profundo o suficiente para
fazer passar a quilha de seu barco à vela e também a rabeta do motor de
popa do barco que ela mandara fazer para Carmen. O canal, que levava da
margem à casa, cercado por densa vegetação e árvores de médio porte,
escondia dos curiosos, que porventura navegassem por ali, os barcos
ancorados nele.
A propriedade ostentava o romântico nome de Villa Rosa da Manhã e era o
refúgio de George e Carmen. Ali, eles se amavam. Ali, ela escreveu
alguns de seus mais famosos romances. Ali, era o mundo particular dos
dois amantes. Viveram juntos dias e noites de amor, na Villa, por quase
uma década. Oficialmente, Carmen era a noiva do poderoso Antonio Campos
Expedito e, com ele, comparecia aos muitos eventos sociais obrigatórios
para as mais nobres famílias da província. Mas, quando se falava em
casamento, Carmen sempre dava um jeito de adiar a cerimônia. Antonio
gostava dela e sabia que ela tinha um caso com o austríaco da tecelagem.
Só não sabia da existência da Villa Rosa da Manhã. Mesmo assim, se
casaria com ela. Ela, além de ser a escolhida por sua família, seria a
esposa ideal para ele; a mãe ideal para os filhos dele. Pouco importava
que ela tivesse suas aventuras. Afinal, ela também as tinha, mantendo
inclusive uma jovem amante em uma casinha escondida na cidade de Santo
Amaro.
Um mês antes daquele dia chuvoso, em abril 1919, quando o carro que
George fazia questão de dirigir ele próprio, despencou por um
desfiladeiro do Caminho do Mar, a estrada velha de Santos, Antonio
estivera pensando em como faria para abrir-se com Carmen e pedir a ela
que, afinal, marcasse uma data para o casamento deles, dizendo
francamente que ele não se oporia ao romance extraconjugal, que ela
poderia manter seu amante.
Não chegou a fazer isso porque os jornais daquele 10 de abril de 1919
estampavam a morte do promissor industrial paulistano, de origem
germânica.
Carmen se pôs em luto profundo, por dentro e por fora, os olhos secos, a
alma em prantos. Como era o mais conveniente, foi ao velório de George
no automóvel da família de seu noivo. Evelyn, inconsolável, entendia,
porém, a dor de Carmen, pois sabia que a moça o amava tanto quanto ela
própria amava seu irmão. Para ambas, era inaceitável que uma alma como a
de George se fosse tão cedo embora da Terra.
Depois da missa de sétimo dia de George, Antonio disse francamente à
Carmen: -- Seu amor se foi, eu lhe proponho não ocupar o lugar dele,
pois sei que você não me ama como eu a amo. Mas eu lhe proponho ser seu
companheiro fiel pela vida afora, dar-lhe os filhos que você quiser ter
e amá-la, como o próprio George a amaria, pela vida afora.
Comovida, Carmen o aceitou.
Quinze dias depois, aberto o testamento de George, Carmen ficou sabendo
que herdara o bangalô da represa e resolveu continuar a fazer dele o seu
refúgio literário. Muitas vezes passou fins de semana ali, com Antonio,
como antes os passara com George. De fato, o amor e a fidelidade, de
Antonio a comoviam. Ficaram alguns anos casados, o suficiente para gerar
seus 6 filhos. Quando se casou, Carmen imaginava que aprenderia a
amá-lo, mas quem tinha lhe ensinado a amar... ah, fôra George!
Capítulo 14- Superação
Mário, o pai de Susana, teve alta do hospital cinco dias depois de
sofrer o AVC. Contrariando todos os prognósticos médicos, foi de cadeira
de rodas apenas até o estacionamento e, para a surpresa de todos os que
o cercavam – esposa, cuidadora e a própria Susana – levantou-se e andou
até a porta aberta do carro, que o funcionário do estacionamento
segurava. Sentou-se no banco do carona, afivelou o cinto de segurança e
disse para Isabel, na direção:
-- Toca pra casa, que eu tenho muito trabalho me esperando lá.
Em vão, os médicos tentaram entender o milagre que se operara em Mário.
Ele deveria, depois do AVC, enfrentar sérias limitações motoras, mas
apresentava apenas um caminhar mais lento, uma certa dificuldade em usar
os talheres à mesa, e, uma semana depois, estava de volta às atividades
de sua cátedra na FGV. Ainda não conseguia dirigir o seu automóvel,
ainda claudicava um pouco no andar, mas a cabeça continuava brilhante
como sempre o fôra. Isso era um desafio ao entendimento dos eminentes
neurologistas que cuidavam dele. Isabel, porém, sorria de lado, aquele
sorriso de quem sabe que a força da alma está acima das limitações do
corpo. Afinal, eles eram Rosacruzes...
Assim, Susana sentiu-se livre para marcar um encontro com Leo, no
Castelo, no fim de semana seguinte. Pretendiam navegar pela represa, no
barco cabinado do pai de Susana, e ir procurar o Bangalô que Leo
descobrira ter sido o refúgio de George e Carmen. Não sabiam se ele
ainda existia, ou quem seria seu atual proprietário, mas conheciam a sua
localização, na margem oposta ao Castelo, exatamente em frente a ele.
Encontram-se no clube na manhã de sábado, muito cedo, e, como o dia
prometia ser de sol, a neblina era bastante forte, quase escondendo a
torre do Castelo. Começaram, de mãos dadas, a descer a rampa de árvores
que levava à praia e, de repente, a neblina pareceu descer, pareceu
tornar-se mais densa e Leo exclamou:
-- Susana... o que é isso? Estou vendo árvores de largos troncos a nos
cercar, árvores diferentes...
Susana riu:
-- Você está vendo o passado. Antigamente, essa rampa era ladeada por
árvores enormes, de largos troncos...
-- Mas..., Mas como posso estar vendo o passado? – perguntou ele,
incrédulo.
-- É porque estamos num Portal do Tempo.
-- Você está me gozando...
-- Não. É sério. Aqui onde estamos existe um Portal do Tempo... Eu já
viajei por ele e não sei se, nesse momento, faremos a mesma coisa...
Leo estava assustado:
-- Parece que vejo, a cada vez que a neblina se torna mais densa, um
corredor de árvores completamente diferentes das que realmente estão
aqui... e, de súbito, elas voltam a ser apenas esses pinheirinhos...
-- Sim – respondeu Susana – também estou vendo... É uma oscilação entre
o passado e o presente.
-- Não brinque comigo! – disse ele, irritado.
-- Não estou brincando. Esse lugar é mágico e você acabará por entender
isso, do alto da sua masculina racionalidade.
Então, como a confirmar a magia, toda a neblina se dissipou e a luz do
sol, por um momento, pareceu cegá-los.
-- Nossa, que coisa mais maluca – exclamou ele, olhando nos olhos dela,
como quem espera uma explicação.
-- Não me peça explicações – disse ela, lendo-lhe os pensamentos – A
única coisa que sei é que aqui, nesse ponto, parece haver uma porta para
outros tempos e, às vezes, se consegue enxergar esse lugar como foi em
outras épocas...
-- Você já passou por isso antes, então? – perguntou ele.
-- Sim – respondeu Susana – Conversaremos sobre isso depois. Agora temos
que nos concentrar em encontrar o bangalô de Carmen e George, se é que
ele ainda existe.
Existia.
Navegaram pela margem oposta a do Castelo, lentamente, até que
encontraram um canal, muito, muito escondido entre a vegetação. Não
tinha mais de 70 m de comprimento. Navegaram, com cuidado, por ele e
chegaram em frente à casa de madeira, coberta por hera. Havia um pequeno
ancoradouro e eles estavam atracando o barco ali quando um velho senhor
se aproximou, abrindo a porta que dava para o pontão. Na porta, uma
plaquinha de madeira, pirogravada com os dizeres “Villa Rosa da Manhã”.
O velho tinha longos cabelos brancos, nenhum dente na boca e disse, com
um sorriso gengival:
-- Finalmente os senhores voltaram! Agora sim, poderei descansar!
Benvindos ao lar, senhor George, senhorita Carmen.
Susana e Leo desceram do barco e, seguindo o velho, se aproximaram da
entrada da casa. Entraram. Um hall, de piso de pedras, cujas paredes
reproduziam vários arco-íris, que eles logo perceberam ser a projeção de
um prisma de cristal, pendurado junto a uma das janelas. O velho
desaparecera. Exploraram a casa, havia uma cozinha, com fogão à lenha,
um banheiro, de piso de mármore e enorme banheira, dois grandes quartos,
com janelas para o jardim e para a represa, tudo impecavelmente limpo e
brilhante. Procuraram pelo velho, para perguntar o que lhes ocorria:
quem vivia ali agora, a quem pertencia aquela propriedade? Mas o velho
desaparecera. Num dos cômodos, havia uma escrivaninha com uma antiga
máquina de escrever. Noutro, uma luneta. Ficaram vagando pela casa,
encantados, e ainda querendo perguntar tantas coisas... Uma luz
enviesada, como se fosse um sol de abril, de outono, banhava o ambiente.
O sol não deveria estar ali – pensou Susana – estamos no verão...
Imediatamente um brilho, reflexo da luz do sol, atingiu-lhe os olhos.
Era o trinco de uma gaveta. Susana caminhou até o móvel, um aparador, e,
sem pensar, abriu a gaveta. Lá dentro, impecável, um calhamaço de folhas
datilografadas. Susana leu: Um Modo Esotérico de Vida, por George Meyer
e Carmen Fomm.
-- George! – exclamou ela e logo se corrigiu: -- Leo! Veja o que
encontrei...
Leo tomou-lhe da mão aquilo que agora sabiam ser os originais de um
livro, talvez nunca levado a público.
-- Isso não pode ser antigo, Susana. É alguma brincadeira. Veja, as
folhas estão impecáveis, branquinhas, parece ter sido escrito ontem e
guardado aqui.
Susana deu um suspiro profundo:
-- Somos nós que estamos no passado, Leo. Talvez cem, cento e dez anos
para trás no Tempo. Lembra-se que passamos por uma névoa muito espessa
antes de encontrarmos a casa?
-- Isso simplesmente não é possível! – respondeu ele, mas já acreditando
que poderia ser. E continuou – Veja nosso barco lá fora... é a prova de
que não viajamos no tempo, como você está supondo... Uma poderosa
embarcação moderna como essa não existia...
-- Nós também não existíamos nesse tempo em que estamos, George... Leo!
-- Por que está me chamando de George, Susana? Sua voz até parece outra
quando você diz o nome dele, do meu tio bisavô, ou sei lá que grau de
parentesco temos de fato!
-- Olhe – disse ela – George e Carmen eram intelectualizados, bem
informados, em algum lugar, nessa casa, deve haver um jornal, uma
publicação qualquer que tenha a data do dia, ou do mês, alguma
revista...
Correram os olhos pelo cômodo. Nada. Mas, na cozinha, jogado sobre uma
das cadeiras da pequena mesa que havia no canto, sob a janela, estava um
jornal. Era O Estado de São Paulo, estalando de novo, com a tinta ainda
soltando nos dedos, quando o pegaram, datado de 10 de abril de 1919.
Dobrado e aberto na página dos obituários.
-- George morreu hoje – disse, pensativa, Suzana.
-- Ontem – corrigiu-a Leo – Esse jornal tem que ser, no mínimo, de um
dia antes daquele em que estamos.
-- Venha – respondeu ela – Vamos embora. Já fizemos o que tínhamos que
fazer aqui.
Antes de sair, porém, Susana percorreu novamente a casa, fotografando
todos os cômodos, a paisagem, o jardim, os móveis... tudo, enfim,
com seu celular.
Quando derem ré pelo canal, perceberam que o mesmo se fechava e, quando
o barco atingiu a margem, viram que não havia canal algum, que, ali,
naquele local, existia apenas uma casa moderna, de largas janelas, onde
se via uma placa com os dizeres: Windsurf Classes.
No banco de couro, entre Leo e Susana, que estava ao leme, o jornal e o
manuscrito lentamente se amarelavam, mas lá estavam as fotos que haviam
feito da casa, uma casa que não existia mais havia muito, muito tempo.
-- Vamos à torre do Castelo – disse Leo. – Pedimos para servir um café
da manhã lá, para nós, naquela pequena mesa e, ali mesmo, vamos ler
juntos esse manuscrito.
-- Você acredita agora, então?
-- Sim – respondeu ele – Acho que acredito pois não consigo – por mais
que tente – imaginar como tudo isso poderia ser um truque, uma
brincadeira, um cenário ou uma projeção virtual...
Susana riu, quase gargalhou:
-- Também pensei, da primeira vez, que alguém tivesse me colocado um par
de óculos virtuais, sem que eu me desse conta.
-- Primeira vez? – fez ele, intrigado.
-- Sim, já me aconteceu, aqui, antes. Aliás, no mesmo dia em que nos
conhecemos.
-- Me conte! – ordenou ele, em tom autoritário.
-- Agora não – riu ela, já atracando o barco no pontão do clube – Agora
vamos pedir ao filho do Rodrigues que leve uma cesta de café para nós lá
na torre e vamos ler esse manuscrito, e fotografá-lo, antes que ele se
desfaça.
-- Incrível! – exclamou Leo – Os papeis estão ficando cada vez mais
amarelos... deve ser algum tratamento químico – disse ele, ainda supondo
novamente que tudo aquilo fosse uma grande armação moderna.
-- É o tratamento químico do Tempo – riu Suzana.
-- Quem é o filho do Rodrigues? Quem é Rodrigues? Esse “filho do
Rodrigues” não tem nome?
-- É o concessionário do bar da náutica. Minha mãe, Isabel ou Bebel,
como era conhecida por aqui, cresceu no Castelo. Ela conta que era tudo
ainda bem primitivo. Na praia, os barcos ficavam guardados em
improvisados barracões de madeira, não nesse lugar onde está hoje a casa
de barcos, mas ali quase no centro da praia, na ponta da península e
trinta metros à esquerda, para quem desce, da rampa, no gramado, havia
um enorme quiosque e era ali que o Rodrigues trabalhava, já como
concessionário do bar da náutica. Minha mãe foi se afeiçoando a ele.
Hipólito Frutuoso Rodrigues, era o nome dele. Mais tarde, quando foi
construído o salão de festas que até hoje é também restaurante, o
Rodrigues e seu irmão ganharam a concessão do negócio. Mais tarde ainda,
uns vinte anos depois, com a nova náutica e a construção de um
restaurante só para esse setor, Rodrigues passou a explorar apenas o bar
e o restaurante da náutica. Eu o conheci nesse época e ele me contou que
minha mãe tomou sua primeira caipirinha, pelas mãos dele, aos 13 anos de
idade... em 1964, portanto.
Leo riu:
-- Bons tempos, politicamente incorretos! Imagine, se fosse hoje, se ele
servisse uma caipirinha a uma menina de 13 anos, seria preso ou, pior,
linchado!
-- A diferença – afirmou Susana – é que, em 1964, minha mãe e as outras
moças de sua geração, aos 13 anos já eram adultas, eram moças feitas e
não meninas tolas, como as de hoje.
Subitamente, Leo perguntou:
-- Você tem filhos, Susana?
-- Não. Nem pretendo tê-los. Como minha mãe. Ela não esconde que eu fui
apenas um acidente na vida dela, sou filha única e quase fui abortada –
e riu... – Minha mãe sempre disse que não desejava ser definida pela
maternidade. Ela acredita que nem todas as mulheres trazem em si, além
dos aparelhos físicos para tal, a vocação para a maternidade. Sou uma
dessas mulheres.
-- Já foi casada? Ou ainda é? – perguntou ele.
-- Não, nunca. E você?
-- Tenho uma filha de 13 anos, que vive com a mãe, da qual me separei há
bastante tempo. Mas a minha filha não toma caipirinha... Pelo menos, não
ainda.
E riram.
Capítulo 15 –
1919, Fantasmas do Futuro
Carmen jogou o jornal sobre a cadeira ao seu lado. Acabara de tomar o
café da manhã, como tantas vezes fizera ali, no bangalô, com George e
agora... ele se fôra para sempre. Isso era alguma coisa muito difícil de
se acreditar, mas o exemplar de O Estado de São Paulo, que ela acabara
de jogar na cadeira, trazia um longo obituário do importante industrial
George Meyer.
Como agora viver sem ele? Desde o dia em que o conhecera – 10 de janeiro
de 1910, jamais se esqueceria – naquele chá no Castelo, Carmen o amara.
Jamais poderia imaginar que ele viveria apenas mais 9 anos... 9 anos,
meu Deus, é pouco tempo... Algumas parcas lágrimas rolaram-lhe pelas
faces e turvaram-lhe a visão. Ainda não conseguira sequer chorar. De
repente, imaginou ver, entre o desfoque causado pelas lágrimas, duas
pessoas ali com ela, andando pela cozinha. Enxugou as lágrimas, mas
continuava a vê-los como num véu de neblina... Eram eles – reconheceu –
eram os seres do futuro, dos quais George tanto lhe falara. A mulher,
Susana, que seria sua descendente e que viera de 2019 e aparecera para
George, segundo ele próprio contava, em 1910. O homem ela não sabia quem
era, mas evidentemente, só poderia ser um neto de George: era igualzinho
a ele! Tentou chamá-los, mas eles não a estavam vendo. Carmen delirou:
aquela coisa com a qual a moça – certamente era Susana--parecia
fotografar o ambiente só podia ser o tal do celular, que George tantas
vezes descrevera e tentara fazer com que Carmen compreendesse o que era.
Agora, Carmen se arrepende de, frequentemente, ter duvidado dele. Ele
contara a ela aquelas duas semanas, que na verdade, segundo ele, eram um
“lapso” no tempo, em que convivera com Susana, a bisneta de Carmen que
viera do ano de 2019.
Carmen, porém, acreditara sem nunca acreditar completamente, até ter
aquela visão de um casal, exatamente igual a eles, Carmen e George, com
roupas estranhas e aquele retângulo luminoso que George explicara a ela
ser a tela do artefato chamado celular. No entanto, refletia Carmen, por
que não estava conseguindo se comunicar com aqueles seres que ela via
claramente e reconhecia como sendo do futuro? George se comunicara,
segundo ele, sem problemas, com Susana. Então, de repente ela percebeu
que deveria haver vários níveis no compartilhamento dos tempos. E que,
talvez, a escolha desses níveis se desse pelo grau de envolvimento das
pessoas com o ambiente, os protagonistas, o cenário... Carmen acreditara
na aventura atemporal de George, mas não acreditara totalmente. Agora
estava tendo a prova, um dia depois da morte de George, de que ele
dissera a verdade. De fato, ela nada teria a dizer ao casal do futuro,
que via como sombras transparentes, como fantasmas, a circular pela
cozinha de seu bangalô. Por isso, por não ter nada a dizer a eles, não
podia se comunicar. Compreendeu, de repente, que aquela linha imaginária
que passava pela rampa de árvores do Castelo e estendia-se além,
passando também pelo bangalô, era de fato um portal do tempo. George não
mentira..., No entanto, Carmen era um espírito prático, nada romântica,
bastante racional e acreditava que viver num único tempo – esse – já era
trabalhoso o suficiente para que se tentasse entender outras épocas.
Para ela, 1919 já era de bom tamanho, 2019 que esperasse—talvez, julgava
ela – por uma das suas próximas encarnações. Por isso, levantou-se e,
ignorando aqueles fantasmas do futuro, foi-se para a máquina de
escrever, onde um dos seus livros a esperava, largando sobre a cadeira o
jornal que trazia o obituário de George.
Capítulo 16 -
Tempo Não Linear
-- Você entende agora que estivemos no passado? – perguntou Susana à
Leo, quando se sentaram à pequena mesa da torre do Castelo, com os
papéis que haviam trazido de 1919, cada vez mais, se amarelando.
-- Você acha que perderemos esse manuscrito? – perguntou Leo.
-- Há papéis bem mais antigos, preservados em inúmeras bibliotecas e
museus, pelo mundo – respondeu Susana, já rindo – Provavelmente esse
aqui continuará amarelando até atingir a cor de um documento com 100
anos de idade.
Mas Leo já começara a fotografar todas as páginas, e, enquanto o fazia,
batia os olhos nesse ou naquele parágrafo. O livro, basicamente, parecia
falar sobre a força do pensamento humano, julgando-o capaz de
transformar a realidade, principalmente quando muitas mentes se unem por
um mesmo propósito. De repente, topou com um capítulo, deu um grito:
-- Susana, veja isso!
Ela, que estava ajeitando a cesta de café na pequena mesa que havia ali,
deu um pulo, assustada:
-- O que foi, meu Deus?
Lá estava o capítulo 6 – “Tempo e Espaço São Ilusões” – começaram a ler
juntos. Os autores afirmavam que a mente poderia se deslocar através do
tempo e também do espaço. Que, da mesma forma como, nos sonhos, se vive
outra realidade, seria possível para a mente humana transportar-se não
só para outros lugares no Universo, como também para outros tempos,
passados ou futuros. Afirmavam ainda que essas viagens no tempo se davam
como um looping, uma linha que saía de um ponto no presente e traçava um
círculo até se fechar no mesmo ponto de onde partira. Ou seja, esse
círculo, onde uma mente se projetava em outro tempo, era a criação de
uma nova realidade e todas as mentes que vivessem essa realidade fora do
tempo comum, linear, voltariam exatamente para o mesmo ponto do tempo
linear de onde tinham partido, não importando se esse “círculo”
demorasse dias, horas ou anos para se fechar. Algumas pessoas se
lembrariam muito bem dessa viagem no tempo. Outras, pensariam ter
sonhado e se lembrariam vagamente.
-- Sim...—murmurou Susana – Foi assim mesmo que aconteceu comigo.
-- Bem, --disse Leo, já irritado – você vai me contar, ou não vai, essa
sua viagem no tempo?
-- Foi no dia em que eu te conheci. Eu estava descendo a rampa de
pinheiros pensando naquela outra rampa, de eucaliptos, que estavam ali,
no lugar dos pinheiros, vinte anos atrás e então, mais ou menos como
aconteceu hoje de manhã conosco, uma nevoa envolveu todo o ambiente e,
quando se dissipou, eu estava em 1910, na rampa de enormes eucaliptos...
Fiquei 15 dias em 1910 e voltei para 2019 no exato instante em que
partira. Aí você estava ao meu lado. Aqueles 15 dias simplesmente não
existiram, mas eu os vivi. Só não podia imaginar que tinha sido a mesma
coisa para George. Quando eu cheguei a 1910 era George, o seu avô, quem
estava a meu lado. Mas, pelo o que ele está afirmando nesse manuscrito,
de alguma maneira ele também voltou, no tempo, para o dia 10 de janeiro
de 1910, o dia em que eu cheguei do futuro. É muito maluco isso. Isso
supõe que, em muitos de nossos sonhos, nós realmente tenhamos nos
deslocado no tempo e/ou no espaço...
O sol já estava começando a avermelhar as águas da represa quando Susana
terminou a narrativa, sempre respondendo às perguntas de Leo que, como
qualquer pessoa, com exceção da própria mãe de Susana, hesitava em
acreditar em tudo que ela contava. Primeiro pensou que estava diante de
algum tipo de transtorno de personalidade, que Susana seria alguém que
criava fantasias e passava a acreditar nelas. No entanto, a riqueza de
detalhes, a incrível coincidência do nome dela com a heroína do livro, a
semelhança física da mulher, na capa do livro, com ela e ainda certos
fatos da própria família dele – a viagem dos pais de George e Evelyn à
Europa, o começo da exportação de algodão que dera novo folego à
tecelagem da família – tudo isso ele sabia porque eram histórias que
seus pais sempre contavam à mesa de jantar. Mas não estavam em nenhum
livro, nem mesmo no livrinho de seu avô... Como ela poderia saber de
tudo, com tantos detalhes? Muitas das coisas que ela descrevia do
próprio Castelo eram as mesmas coisas que o avô de Leo, que passara a
infância naquele Castelo da família, descrevia. A adega, a sala de
vidro, os móveis replicados de filmes austríacos... Como ela poderia
saber disso? – ele se perguntava... E, mesmo que tivesse algum tipo de
acesso a toda aquela informação, por que inventaria essa viagem no
tempo? A experiência que tiveram eles dois, Leo e Susana, naquela manhã,
naquele bangalô que de repente não estava mais onde estivera minutos
antes... Aquilo fôra uma viagem no tempo, ele próprio sabia que era
alguma coisa muito difícil de se forjar... E quem forjaria tudo aquilo?
E por que? Não fazia sentido. A única coisa que fazia sentido era
acreditar.
Quando terminou de contar, Susana tinha lágrimas nos olhos. Leo a
abraçou e disse:
-- Venha, minha amada, vamos descer e almoçar, ainda devem estar
servindo no restaurante e, além da fome, estou sentindo também muitos,
muitos ciúmes do meu avô... É a ele que você ama, mas eu, como ele,
também estou ficando apaixonado por você.
Susana olhou bem dentro dos olhos dele e queria dizer: “Você é ele, em
outro tempo” – mas, com toda a força do seu coração, sabia que ele
estava certo, era a George que ela amava, um homem que morrera há cem
anos passados. Então desabou no abraço dele e chorou, chorou
perdidamente.
CONTINUA...
Capítulos 17
a 24
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