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Para Susana Campanhã,
guardiã dos meus sonhos e atual
Senhora do Lago,
e para Vera Krausz,
companheira de infância no Castelo.
24 de fevereiro a
7 de agosto de 2019.
 

 

 

 

Esclarecimento necessário:

Essa aqui é uma história de ficção, calcada

em alguns fatos reais e outros inventados.

Os personagens da ação da história são fictícios. Os personagens periféricos à ação podem ser, ou não, reais. O mais real, na história toda, é a magia que de fato existe nesse Castelo...

 

 

 

 

 

 

 

 

Sobre o Castelo, Clube de Campo, leia também a nossa história lá, de 1959 a 1987 e, depois, 2017, com muitas fotos e vídeos.

 

 

1983

2017

 

 

 

2017

1959

 

Do Tupi Guarani:
Guarabitinga – Garças na Terra Branca

 

 
Um Castelo Além do Tempo

por Isabel Fomm de Vasconcellos

 

Aqui, do Capítulo 17 em diante.

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Para ir ao Capítulo 1, clique aqui.

 

 

Índice:

Capítulo 17 - Um Modo Esotérico de Vida

Capítulo 18 - Extensões no Tempo

Capítulo 19 - O Pensamento e Sua Força

Capítulo 20 - O Real e a Ficção

Capítulo 21 - Reencontro

Capítulo 22 - História Inventada

Capítulo 23 - À Sombra da Morte

Capítulo 24 - O Ford Fênix

Capítulos 25 a 31

 

Capítulo 17 –

Um Modo Esotérico de Vida

Carmen levou semanas, depois da morte de George, para começar a chorar.
De repente, tudo à sua volta, era alegria. A família de Antonio, satisfeitíssima porque, finalmente, os “pombinhos” tinham resolvido marcar a data do casamento, a sua própria família que respirara aliviada pela morte do amante da filha, pois, afinal, aquela situação gerava uma enorme ansiedade na família, que temia não só pela reputação da jovem como por seu próprio tradicional sobrenome.

A agenda, para tantos preparativos, a cerimônia religiosa, a civil, os trajes, a festa, os muitos vestidos, desde o de noiva até os que usaria na lua-de-mel, a viagem, os convidados, os convites, os padrinhos, o imenso trabalho na cozinha, o bolo, o fotógrafo, o cinegrafista... A agenda era cheia e ela mal conseguia escrever suas crônicas semanais para o Expresso Popular, quanto mais trabalhar nos seus livros.

Carmen se deixara absorver por aquele turbilhão de preparativos que, por milagre, conseguiam afastá-la um pouco da dor pela perda de seu amante, seu amor, seu homem, sua inspiração... Sem ele, todo o brilho se fôra e lhe sobrara a sua própria racionalidade, tão rara em seu sexo; sobraram-lhe ainda as letras e a sua luta pelo direito das mulheres, essas infelizes cidadãs de segunda classe, condenadas ou a uma vida fútil, se ricas, ou a uma vida de incontáveis sofrimentos, se pobres.

Jamais Carmen parara para pensar até onde iriam, ela e George, naquele caso de amor escondido, até quando ela conseguiria postergar o noivado com Antonio, até quando... Ela só queria saber de viver aquela felicidade, aquele amor naquele bangalô, a comunhão de ideias e de ideais que existia entre eles. E, antecipando em quatro décadas o pensamento existencialista, imaginava apenas que o futuro não existia e pronto. O importante era viver o presente e o presente era George. De repente, sem aviso, o presente se tornara apenas a ausência de George.

No dia seguinte à morte dele, refugiara-se no bangalô da Guarabitinga e tivera aquela visão (ou teria sonhado? – perguntava-se depois) com um casal supostamente do futuro, supostamente iguais na aparência a George e a ela. Sabia – porque George lhe contara – que a mulher que viera do futuro era sua descendente e era também incrivelmente parecida com ela própria. “Podia ser sua irmã gêmea” – dissera ele. Mas, apesar da visão, como acreditar em tudo aquilo? George escrevera, no livro que pensavam publicar juntos, que os tempos corriam em paralelo e, quando alguma consciência “pulava” fora de uma linha para outra linha, criava uma espécie de bolha, ou círculo que existia, de fato, fora do tempo linear e, quando se voltava dessa “viagem”, voltava-se exatamente para o momento em que se partira... Carmen tinha agora a certeza que jamais deixaria que esse livro viesse a público. Ririam dele, ririam dela, maculariam a memória de George. Melhor deixar para a posteridade apenas o pequeno romance que ele escrevera, de ficção sobre viagem no tempo, não um tratado filosófico que de maneira alguma seria levado à sério pelos estudiosos.

Por isso, naquela tarde, uma rara tarde de sol em São Paulo, já grávida de seis meses e certa de que o filho que trazia em seu ventre era de George e não de seu marido, Carmen voltou ao bangalô disposta a esconder ou mesmo destruir os originais de “Um Modo Esotérico de Vida”.

Cumprimentou os caseiros e foi direto para a pequena gaveta do aparador, onde ela e George haviam deixado os originais, quando da última leitura que haviam feito. Mas não estavam lá! Perguntou aos caseiros, procurou em todas as gavetas de todos os cômodos, entre as estantes de livros, numa busca tão frenética que até os caseiros se puseram a procurar também. Simplesmente desaparecera!

-- Não teria o sr. George levado os originais da última vez em que estivera aqui? – perguntou aos caseiros.

Não. Da última vez, George estivera lá com ela mesma, saíram juntos e ele não levara o manuscrito. Mesmo assim, Carmen resolveu atravessar a represa e ir até o Castelo. Tinha chegado ao bangalô por terra, com seu chofer, o único capaz de enfrentar o lamaçal daquela estradinha que corria às margens da represa e que dava acesso, inclusive, a um conjunto de casas de veraneio que começavam a se erguer num luxuoso loteamento chamado Riviera Paulista.

Mandou preparar seu barco. O caseiro disse:
-- Dona Carmen, é melhor eu levar a senhora. O vento vai virar e a represa vai encrespar, a senhora pode ter problemas para voltar e no seu estado...

Ela riu:
-- Epaminondas, o “meu estado” não é uma doença...

O marinheiro encarregado dos barcos do Castelo, seo Abel, veio recebê-la no pequeno ancoradouro.
-- Dona Carmen, ninguém me avisou que a senhora viria hoje...

-- Eles estão em casa? – perguntou ela – Eu não vinha. Resolvi de repente.

-- Dona Augusta e Evelyn estão no terraço alto, eu ainda as vi há pouco. Vão ficar contentes em vê-la. – E fitando a barriga de Carmen – A senhora quer que eu peça ao cocheiro para levar a senhora na charrete até o Castelo?

Carmen riu de novo:
-- Vocês homens pensam que gravidez é doença! – O Epaminondas queria me trazer, achando que era perigoso eu atravessar sozinha de barco. E o senhor agora, seo Abel, acha que não sou capaz de subir uma rampa de míseros 100 metros?

Abel riu também.
-- A senhora sabe, dona Carmen, a minha mulher teve nossos cinco filhos, trabalhando normalmente até a hora de dar à luz... Lavando, passando, costurando...

-- E você acha que eu não posso subir uma rampa? – riu de novo Carmen.

-- A senhora manda – respondeu Abel.

Matilde, a governanta, conduziu Carmen ao terraço alto. Evelyn levantou-se, com um sorriso sincero e alegre, ao ver a amiga.
Trocados os cumprimentos, com as devidas alusões ao bebê que Carmen carregava em seu ventre – e Carmen sabia que, naquela família, todos desconfiavam que o seu bebê fosse, na verdade, de George – Evelyn disse:
-- Mas a que devemos a honra de ter você hoje aqui conosco?

-- Lamento dizer isso – respondeu Carmen – Mas o fato é que George e eu estávamos trabalhando nos originais de um livro que deveria estar numa gaveta em nosso bangalô. Mas não está, simplesmente. Os caseiros e eu vasculhamos todas as gavetas, todas as possibilidades e então eu pensei que talvez George tenha trazido os originais para cá, que talvez pudessem estar em seu escritório na torre...

-- O escritório não existe mais – disse Evelyn. – Depois do passamento de George nós retiramos tudo o que havia lá. Livros, papéis, pastas, escrivaninha, máquina de escrever... enfim, tudo. Fizemos lá uma estufa de orquídeas, a flor que ele mais gostava. Eu mesma retirei tudo o que havia lá e posso garantir a você que não havia nenhum original, a não ser o do livro que editamos, afinal, no ano passado. Mas, de qualquer maneira, posso levá-la ao armário, na nossa Biblioteca, onde estão guardadas as coisas que estavam no escritório.

A Biblioteca a que Evelyn se referia era um canto, à esquerda da entrada da casa, um nicho sob a escada. Entre as estantes havia um armário vertical, envidraçado e lá estavam, muito bem arrumados, os materiais e instrumentos do escritório de George, inclusive a máquina de escrever. Os olhos de Carmen se encheram de lágrimas. Evelyn, para fingir que não via a emoção da amiga e evitar-lhe o constrangimento, virou-se para o lado, notando um volume na estante, um livro que estava fora do lugar. Disse então, pegando o exemplar:
-- Que estranho! Esse livro, “Luiza Homem”, eu o li há bastante tempo, mas tenho certeza que o coloquei de volta no lugar certo, na estante dos escritores brasileiros. Ninguém nessa casa, além de mim (e de George, acrescentou em pensamento) lê autores brasileiros. Minha mãe mal fala português e meu pai acha que os “nativos” não têm capacidade intelectual...

Carmen lembrou-se que George lhe dissera que Susana, quando estivera com eles, pegara exatamente aquele livro para ler. E refletiu: se fôra Susana quem colocara o livro ali, então a tal curva fora da linha do tempo, que George tanto teorizava, deixava sim os seus rastros no chamado tempo-linear. Se estava certa, então algum outro rastro da passagem de Susana pelo Castelo, em 1910, poderia estar presente ainda ali, dez anos depois... Logo, porém, afastou o pensamento. O livro em questão não teria passado dez anos na estante errada... ou teria?
Num impulso, disse à Evelyn:
-- Você me daria um caro presente?

Evelyn olhou para Carmen, surpresa:
-- Um presente?

Carmen respondeu:
-- Sim, para mim, inestimável. Mas não me ofenderei se a resposta for um não. Afinal, o que eu quero tem também muito valor para a sua família...

-- Mas o que? – perguntou Evelyn.

-- A máquina de escrever. A máquina de George. Estarei mais perto dele, meus dedos teclando as mesmas teclas que os dedos dele teclaram.

Evelyn hesitou por um segundo e depois respondeu:
-- Sim, é claro, você deve mesmo ficar com ela.

Na máquina de escrever de George, Carmen Fomm de Vasconcellos criou, dali em diante, todas as suas obras literárias. Mas nunca foi capaz de descobrir onde havia, afinal, ido parar o manuscrito de “Um Modo Esotérico de Vida”.



Capítulo 18 – Extensões no Tempo

Evelyn lembrava-se vagamente de que tivera um sonho com uma mulher que viera do futuro. Uma mulher com a face e o corpo de sua amiga Carmen. Já, a própria Carmen, julgava que sonhara com aquele casal, supostamente vindo do futuro, a invadir-lhe o bangalô, um dia depois da morte de George. Se toda aquela loucura de viagens no tempo era real, então doía-lhe a consciência de que George amara de fato Susana e que vira nela, Carmen, apenas o reflexo de um amor inatingível, que se fôra de volta 109 anos, para a frente, no tempo.

Assim também sentia-se Susana, supostamente amando Leo, quando, de fato, amava George. Mas seriam ele, George, Leo, Susana e Carmen, apenas extensões da mesma pessoa no Tempo?

Ali estava o Castelo. Imune aos amores, imune às dúvidas, imune à passagem do tempo. Abrigara inúmeros personagens ao longo de décadas e, certamente, abrigaria ainda muitos outros mais. As pessoas passam, mas o que elas constroem permanece por muito mais tempo que o simples sopro da vida humana. O que são 80, 90 anos de vida diante da imensidão da história do ser humano sobre a Terra?

Susana refletia sobre o sentido daquela experiência temporal que vivera. Por que ela estivera em 1910? Por que se apaixonara por George? Por que vivera aqueles 15 dias fora do tempo linear? Mistérios..., mas nada demais, afinal, já que a própria vida era um mistério. Às vezes pensava que os humanos viviam tão ocupados com suas lutas – fossem estas pelo poder, pelo sucesso profissional, pelo reconhecimento intelectual –para justamente se esquecer do grande mistério que era o simples fato de estar vivo e de, um dia, morrer.

Tudo o que estava vivenciando, porém, trazia-lhe uma mensagem: a morte certamente não seria o fim, mas um recomeço. Ela, por exemplo, poderia ser, sem dúvida, a extensão de sua bisavó Carmen. Ou talvez, fossem simplesmente, Carmen e ela, a mesma pessoa, em diferentes pontos no Tempo.

Colocava suas dúvidas para Leo, naquele almoço tardio de sábado, no restaurante do clube.

E foi ele, com sua racionalidade tipicamente masculina, quem lhe deu uma resposta simples e direta:
-- Você viajou no tempo para que, um dia, como agora, pudesse trazer a obra de George e Carmen à luz. Se essa obra viesse à público na década de 1910 ou mesmo mais tarde, nos revolucionários anos 1920, seria simplesmente ridicularizada. Hoje, quando a comunicação é instantânea e completa, é bem mais fácil, para qualquer um, compreender esse lado esotérico da vida, esse mistério da consciência se expandindo além do tempo e do espaço. A ficção científica se encarregou de preparar nossas mentes para um salto ainda maior do que a World Wide Web. Agora, em 2019, qualquer loucura torna-se uma possibilidade a ser considerada. Nossos antepassados, tanto George quanto Carmen, estavam à frente do seu tempo.

-- Isso é verdade – respondeu Susana. – Tanto que Carmen só teve seu talento reconhecido décadas depois de sua morte. E George, antes mesmo de eu ter lhe contado o que aconteceria no século, já antevia as conquistas do século XX. Mas ainda sobram porquês. Viajar no tempo para “corrigir” alguma coisa que não deveria estar ali, naquela passado, mas estava? Por que George e Carmen estariam à frente do seu próprio tempo, escrevendo um obra que talvez só fosse revelada um século depois? Nós trouxemos o trabalho deles para o nosso hoje... e agora? O que faremos com isso?

-- Ora, vamos editá-lo, é claro – respondeu Leo com simplicidade.

-- Com eles dois como autores? Com explicaremos isso? – perguntou ela.

-- Isso é moleza – respondeu Leo – Diremos que encontramos esse manuscrito, assinado por nossos antepassados, no meio de alguns documentos de família que foram sendo preservados ao longo do tempo.

-- Não no Castelo – riu Susana – O Castelo, como clube, não tem memória alguma. Nem mesmo fichas de sócios antigos, documentos da fundação, nada. Não tem arquivos, como se alguém não quisesse que se vasculhasse o passado dessa instituição.

-- Mas na casa dos meus pais – disse Leo – que é também a minha casa hoje, pois voltei para lá depois do meu divórcio, existem muitas caixas enormes, guardadas no porão, com documentos preservados, como certidões de nascimento, casamento, óbito... toda a memória da família. O porão é climatizado e uma bibliotecária foi contratada para digitalizar todos aqueles documentos... Meu pai era um entusiasta da memória e o meu tio, irmão dele, construiu um site na Internet com a história das nossas origens, com arvore genealógica, fotos antigas e também antigos documentos digitalizados. Foi lá que eu achei a história de George, você sabe.

-- Sim, você me contou – respondeu Susana.

-- Então teria sido perfeitamente possível encontrar um manuscrito desse meu antepassado, George, no meio de tantas memórias preservadas. Assim como encontrei, depois da morte do meu pai, o próprio livrinho que acabou me trazendo ao Castelo e à você.

-- Pois é – exclamou Susana. – Não teria sido mais fácil a Vida, ou Deus, ou o Destino, fazer com que encontrássemos esse manuscrito em nossos arquivos familiares em vez de aprontar toda essa confusão de viagens no tempo? Se o objetivo da vida era resgatar essas ideias um século depois, por que não o fez da maneira mais simples e lógica?

-- Sabe – disse Leo – há muito venho compreendendo que a Vida nada tem de simples e, menos ainda, de lógica.



Capítulo 19 –

O Pensamento e Sua Força

-- Simplesmente não tem lógica – esbravejou, já perdendo a paciência o Dr. Reynaldo Luiz, eminente professor de neurologia da USP – que atendia, em seu luxuoso consultório particular, o pai de Susana, Mário, naquela manhã de segunda feira. – A sua tomografia mostra perfeitamente as áreas do seu cérebro que foram afetadas pelo AVC e as consequências disso deveriam ser uma dificuldade de caminhar e a lentidão motora de uma maneira geral. No entanto, você entrou aqui caminhando como sempre, sem claudicar, sem titubear. Eu confesso que não tenho uma explicação científica para isso e vamos repetir o exame. Deve ter havido alguma confusão no resultado, uma troca, improvável é claro, mas menos improvável do que a realidade.

Mário acabara de contar ao médico, seu amigo de longa data, desde que ambos começaram a frequentar o mesmo clube de golfe havia quase quatro décadas, que ouvira, durante a sua permanência na UTI, todas as conversas dos médicos, bem como os trágicos prognósticos traçados por eles para o seu quadro de saúde pós AVC.

O médico dissera que ele sonhara. Que teria sido impossível, nas condições em que se encontrava então, ter ouvido qualquer coisa, estava inconsciente.

No entanto, apesar de não poder dar o braço a torcer, Dr. Reynaldo sabia que era verdade, porque não era provável que um leigo na Medicina, como seu amigo Mário, pudesse reproduzir com tal perfeição os diálogos travados, à cabeceira de seu leito na UTI, em puro mediques.

O fato é que Mário, ouvindo a sentença que os médicos lhe vaticinavam, revoltara-se e, usando toda a força de seu pensamento, reagira dizendo a si mesmo que seu cérebro encontraria outros caminhos para superar as dificuldades motoras e que ele sairia do hospital andando com suas próprias pernas e carregando nelas a sua extrema capacidade de superação. Afinal, ele aprendera, ao longo de décadas de estudos esotéricos, que a mente tudo pode, desde que não paire sobre ela a menor sombra de dúvida.

E agora, duas semanas depois do AVC, lá estava ele, desafiando seu amigo neurologista a explicar, em bases científicas, como teria ele conseguido o que, ao outro, parecia um milagre.

Da mesma maneira que Mário recusara-se a incorporar suas dificuldades corporais, Dr. Reynaldo recusava-se a acreditar nessa conversa fiada do amigo sobre “força da mente”. Ora, se assim fosse, argumentava ele, por que a ciência teria percorrido longos e tortuosos caminhos para encontrar soluções e/ou paliativos para as enfermidades das quais poucos estavam livres, ao longo da vida?

-- Nunca – dizia o doutor ao amigo – em nenhum congresso internacional, um caso como o seu foi mencionado, sequer cogitado. Isso que você afirma ter conseguido apenas com a força de seu pensamento não está descrito em nenhum dos anais da Medicina. Hoje em dia, sabemos bem, o pessoal da psicossomática tem várias explicações para a atuação da mente sobre o trânsito químico do corpo, a emoção é química, dizem eles. Mas pouco podem provar. É claro que conhecemos a influência dos sentimentos na produção de hormônios e outras substâncias, como neurotransmissores, e temos explicações lógicas para essas influências. Mas não para casos como o seu. O mapa do seu cérebro indica claramente as limitações que o seu corpo sofreria em tal situação. Portanto, a única coisa que posso aceitar é que essa tomografia não seja, de fato, do seu cérebro. Alguém cometeu um erro imperdoável, trocou, não posso imaginar como, sua tomografia por outra.

Mário riu:
-- Reynaldo, você como homem culto que é, sabe muito bem que, ao longo da História, a ciência sempre negou a evidência que não podia explicar, até que pôde. Mas existem conhecimentos que estão de fora do rol do conhecimento científico atual. São verdades empíricas que alguns grupos conseguiram preservar ao longo de séculos, verdades que, primeiro pela religião e depois pela própria ciência, por não conseguir explicá-las, vêm sendo varridas para baixo dos tapetes ou da racionalidade ou da fé cega. Você sabe que eu sou Rosacruz. Minha mulher e eu, aliás, porque, diferentemente dos maçons, os rosacruzes não menosprezam a inteligência e a capacidade do sexo feminino. Pelo contrário, reconhecem que elas, as mulheres, têm uma maior capacidade intuitiva do que nós, homens, justamente porque são mães e a natureza as dotou dessa capacidade para que pudessem melhor preservar as suas crias. Como rosacruzes, aprendemos que, dentro de determinados limites, podemos moldar as nossas funções cerebrais e as de outros órgãos do nosso corpo. Só isso. Para nós, como dizem hoje os jovens, simples assim.

-- Eu insisto – disse Reynaldo – Por que teríamos empreendido toda essa longa jornada da pesquisa científica e farmacêutica se a solução das doenças dependesse apenas da força do nosso pensamento?

-- Porque a humanidade optou, nos últimos milênios, pelo pensamento racional. À medida que negou a contribuição do lado onírico, o lado direito do cérebro, como diria Carl Sagan, e foi percebendo que a ciência e a tecnologia podiam produzir maravilhas, como de fato as produzem, esqueceu-se da alma, dos sonhos, do conhecimento intuitivo. Minha mulher escreveu um livro – Todas as Mulheres São Bruxas – que propõe uma nova visão da luta feminista, a luta pelo direito de incorporar ao mundo criado exclusivamente pela racionalidade masculina, a profunda intuição feminina, o conhecimento empírico das magas, que a igreja transformou em bruxas. Mulheres que eram poderosas, no princípio da Idade Média, classificadas como pertencentes aos povos bárbaros, classificadas como bruxas, cuja sabedoria sobreviveu apenas graças à Tradição oral.

-- Sei – zombou Reynaldo – elas davam um passe com as mãos e o doente se curava...

-- Longe disso – respondeu Mário – Elas sabiam manipular as forças presentes na natureza, na essência das ervas, das plantas. Hoje, a sua querida USP, ou parte dela pelo menos, está redescobrindo a eficácia dos medicamentos fitoterápicos, produzidos a partir das moléculas extraídas dos vegetais. O homem estritamente racional se afastou da natureza e a está, inclusive, vilipendiando. Árvores, florestas, plantas, são seres vivos. Têm, a sua própria linguagem. Animais não são apenas bestas. Tudo o que está vivo, sobre a Terra, está entrelaçado e é interdependente, assim, como tal, se ajudam, seres humanos, vegetais e animais. E, além disso: as above, so bellow. O que está em cima é igual ao que está embaixo. Assim na terra como no céu. Somos feitos do pó das estrelas, meu caro amigo. O universo e nós somos uma única coisa.

Reynaldo estava impressionado com o discurso e com a convicção de seu amigo. Ainda assim, tentou brincar:
-- Não sabia que um eminente acadêmico como você, destinado a formar administradores de grandes conglomerados do mundo corporativo, podia ter alma de poeta.

-- A vida é poesia pura, Reynaldo. A poesia é a nossa única salvação.

-- Se você tivesse feito Medicina, meu amigo, não acreditaria nisso. Para nós, médicos, a vida é puro sofrimento. E a salvação talvez esteja nas células troncos, na manipulação genética. Hoje engatinhamos naquilo que estamos chamando de Medicina Personalizada, ou seja, a partir da análise genética de um indivíduo fabrica-se um medicamento adequado apenas para ele. – disse o médico, antes de passar suas recomendações finais ao amigo, a quem observou, intrigado ainda, sair caminhando perfeitamente de seu consultório.


Capítulo 20 – O Real e a Ficção

Isabel pensava na morte. Susana contara a ela que George, seu amor de 1910, morrera apenas 9 anos depois, em 1919, num trágico acidente automobilístico. Susana e Leo haviam descoberto, inclusive, o bangalô onde George e Carmen se escondiam para viver o seu amor proibido. Depois da morte de George, Carmen casara-se afinal com Antonio Expedito e ela própria, Isabel, e sua família, descendiam dessa união. Já Leo, descendia da irmã de George, Evelyn. Estavam todos entrelaçados no Tempo. E, agora, Susana se recusava a se entregar ao amor de Leo, insistindo que era George que ela amava. Bullshit, pensava Isabel. Sua filha estava apenas com medo do amor. Da mesma maneira que George amara a Susana de 2019 e depois amara Carmen, de seu próprio tempo, Susana poderia amar Leo, que nada mais era do que a reencarnação de George, assim como Susana certamente era a reencarnação de Carmen. E ela, Isabel, quem era? Escritora, como sua antepassada Carmen, com 15 livros publicados, mas ainda longe de ter seu talento reconhecido. E já estava com 68 anos. Mais do que Lya Luft, que tivera seu reconhecimento aos 65. Mas também – pensava ela – depois disso, sumira...

Quando jovem, Isabel, que era uma leitora voraz, muitas vezes duvidara de seu talento. Não queria pagar para editar um livro, por isso só conseguiu um editor que a bancasse quando tinha 49 anos de idade. Depois disso, foi publicando quase um livro por ano, todos bancados pelos editores. E se orgulhava disso. Agora, porém, estava tendo editados livros em parceria com pessoas que tinham algo a dizer, algo a narrar e elas próprias bancavam os livros. Não era ruim. Mas estava longe de ser o que seus sonhos previam. Ser escritor, no Brasil de 2019, era uma perspectiva não muito boa. Escritora? Piorou. O Brasil tinha poucos leitores. No entanto, apesar disso, muito retorno ela tivera por suas obras, muitos leitores a idolatravam, escreviam mensagens para ela por email ou pelas redes sociais, alguns muito emocionados com as suas obras. Mesmo assim, pouquíssima visibilidade. Um amigo, que morava na Europa, dissera a ela: “Se você fizesse tudo isso o que faz, em Portugal, estaria milionária”. Não era exatamente esse seu gol. Ela queria ser lida, ser reconhecida. Não precisava ficar milionária. Embora tivesse nascido rica, hoje, com o marido professor acadêmico e suas poucas vendas de livros, conseguia manter o status e a sobrevivência.

Mário sobrevivera ao AVC. Mas já estava perto dos 80 anos de idade. Ela tivera um enfarte, aos 59, por estresse, disseram os médicos. Hoje pensava na morte. Não iria morrer, ah, claro que não, sem alcançar o reconhecimento de suas obras.

No entanto, sabia ela, muitas vezes a morte era uma surpresa. Fôra inesperada, para George. Fora inesperada para sua amiga, Luciene, com a qual escrevera um romance maravilhoso. Jamais conhecera pessoalmente Luciene. Ela lhe contara suas aventuras pelo Facebook, Isabel as romanceara e, tal como George, com apenas 36 anos de idade, Luciene morrera, uma semana depois do livro pronto, num acidente automobilístico.
“Para morrer, basta estar vivo” – brincava seu pai, Alfredo, sempre com seu humor admirável.

Para Isabel, no entanto, a morte, se nada tinha de humor, tinha tudo de naturalidade. “Morrer é da vida”, cantava Noel Rosa. Mas ela não morreria, ah, não morreria, antes de ver seus livros conquistarem o mundo.
Talvez esse, que ela acabaria escrevendo, sobre o Castelo e as viagens de sua filha no tempo, afinal, alcançasse o que ela almejava. Compreendia que Susana poderia se revoltar quanto a ter sua vivência transformada em romance, em ficção. Mas sabia também que sua filha era generosa o suficiente para permitir que ela transformasse em livro esse imenso mistério que estava vivendo.

Pelo menos – pensava Isabel – antes que eu me vá.

Afinal, nenhuma das 7 bilhões e meio de pessoas sobre a Terra sabia por que estava aqui. Podia acreditar que tinha uma missão, podia crer numa razão, mas saber mesmo... ah... ninguém sabia! Isabel tinha uma curiosa teoria. Ela pensava acreditar que os bebês sabiam; que os bebês tinham a consciência das lembranças de outras vidas que tinham vivido e, por consequência, também das passagens pela morte; depois se esqueceriam completamente para poder viver um nova vida, livres dos ranços, tristezas e até amores que pudessem trazer de outras encarnações. Por que – costuma ela perguntar – ninguém se lembra de nada que viveu até os dois nos e meio ou três anos de idade? Porque – ela mesma respondia – porque esse é o tempo em que nos lembramos de outras vidas que já tivemos. Quando ela vinha com esse discurso, Mário sempre brincava:
-- Ah..., mas eu me lembro perfeitamente dos meus dois ou três primeiros anos de vida, me lembro daquelas maravilhosas bolsas de pele que provinham a minha alimentação, o sabor maravilhoso daquele leite único, apenas meu...

-- Não seja mentiroso – esbravejava Isabel – É claro que você não se lembra, ninguém se lembra.

Recentemente Isabel lera na Internet um artigo sobre uma pesquisa, realizada no Canadá, com 140 crianças, entrevistadas aos 4,5 anos de idade e, depois, com 7,8. As menores tinham lembranças anteriores, mas, quando cresceram, relataram coisas diferentes, como se aquelas primeiras lembranças, aos 4 ou 5 anos, tivessem sido deletadas de suas memórias. Os cientistas então falavam muita coisa sobre a capacidade cognitiva na infância, mas, de fato, não chegaram à conclusão alguma sobre o porquê daquilo que eles próprios chamam de “amnesia infantil”.

-- Não podemos nos lembrar de outras vidas – dizia Isabel – Traríamos rancores, sofrimentos, traumas e até alegrias e amores de passagens que foram, afinal, encerradas. Uma nova vida tem que ser livre de quaisquer sentimentos e impressões anteriores. Por isso nos esquecemos de outras encarnações, mas as memórias estão guardadas num hardware, inacessível por enquanto, dentro do nosso cérebro.

-- E por que nos lembraríamos de outras vidas, ao nascer, então? – perguntara um dia, irritada e achando toda aquela conversa materna um tanto ridícula, a então adolescente Susana.

-- Porque precisamos construir as bases emocionais da vida que estamos iniciando, precisamos saber o que faremos diferente, desta vez. Então depois nos esquecemos dos fatos, mas estamos emocionalmente prontos para continuar nosso longo e eterno aprendizado.

-- Aprendizado para que?

-- Para um dia viver um vida plena, para poder ensinar às novas almas.

-- Ai, mãe – respondera então a jovem Susana – Eu acho que você é louquinha de pedra...

Agora, enquanto Isabel pensa na morte e se sente absolutamente ridícula por conseguir, diante da inexorabilidade da morte, importar-se com questiúnculas fúteis do cotidiano, Susana pensa na vida e no mistério do Tempo.

-- Minha mãe está escrevendo um livro sobre nós – disse Susana à Leo – um livro sobre as nossas viagens no tempo.

-- Hum... – fez ele – é um belo presente, um enredo, que você está dando a ela.

-- Você não se importa? – perguntou Susana.

-- Não – respondeu Leo – Acho até muito legal, mas ela vai dar nome aos bois?

-- Ah... acho muito pouco provável – respondeu ela – Minha mãe tem a capacidade de transformar o que é real em ficção.

Capítulo 21 - Reencontro

George e Carmen viviam seu caso de amor, sempre no bangalô. Quando se encontravam socialmente em alguma festa ou jantar, ou até mesmo no Jockey Club (que à época localizava-se à Rua do Rosário, na Mooca), portavam-se como dois estranhos, apenas conhecidos. Isso, é claro, incomodava a ambos. Tentavam sempre viver em plenitude as suas horas juntos, produziam textos, conversavam sobre todas as questões políticas, filosóficas, em profundidade e se amavam satisfatoriamente. Mas, entre eles, pairava a sombra de Susana. Carmen sabia que, se fosse verdade aquela história de viagem no tempo (e, embora relutasse em admitir racionalmente, no íntimo sabia que era verdade, sim) então George talvez a amasse por sua semelhança física com sua descendente. E George sentia, em Carmen, uma racionalidade (não comum ao sexo dela, admitia) que nunca sentira em Susana. As comparações eram inevitáveis. Muitas vezes, tendo Carmen em seus braços, ele desejou estar com Susana. Mas são a mesma alma, são a mesma pessoa, em tempos diferentes – dizia ele, em pensamento, tentando convencer a si próprio. No entanto, apesar de ser relativamente feliz com Carmen, George ansiava por Susana, por seu celular cheio de fotografias do futuro, por seu sorriso claro... Imaginava... E se, de repente, ela voltasse? Tinha que admitir que, se ela voltasse, era ela, e não Carmen, que ele teria ao seu lado no bangalô. Mas, se ela voltasse, seria, como antes, por um breve período? Ele sacrificaria sua relação com Carmen por mais alguns breves dias com Susana? Sim – admitia ele – qualquer coisa por uns breves dias com Susana...

Do outro lado do tempo, na cama ao lado de Leo, Susana devaneava, os olhos abertos na insônia. Leo dormia tranquilo, depois do amor. Ela, porém, pensava em George. Certamente, Leo e George eram a mesma pessoa em diferentes momentos na linha do Tempo. Então, por que, apesar de todo o carinho e de toda a ternura que sentia por Leo, apesar do entendimento incrível que tinham eles dois, por que, ainda ansiava por George?
Decidiu então que tinha que tentar. Tinha que tentar alcançar, novamente, George, no tempo.

Dia seguinte, domingo, 27 de janeiro de 2019, Susana foi ao clube, sozinha. Sentindo-se dividida, em parte por pensar que estava traindo o amor de Leo, naquela tentativa que faria de acessar o portal do tempo que ela sabia estar naquele corredor das árvores do Castelo. Ficou parada ali, no meio do corredor, por muito tempo. Repetia mentalmente que queria voltar para George. Mas nada acontecia.

Naquele domingo, 9 de março de 1919, George estava sozinho no Castelo. Seus pais e sua irmã tinham ido para a cidade e ele pensava que, apesar dos quase 10 anos decorridos desde a vinda de Susana, ele ainda a sentia presente, ali, no caminho das árvores. Já estava no terceiro uísque, antes do almoço e vira, claramente, nos olhos de Matilde, a governanta, a reprovação, quando ele enchera novamente o copo. Saiu caminhando, copo na mão, o coração apertado, ansiando por alguma coisa que não poderia precisar o que fosse. Foi então que a névoa o atingiu. Quando se dissipou, ele viu, com surpresa, que as majestosas árvores do caminho, agora não passavam de pinheirinhos mirrados... e Susana estava ao seu lado.

-- George – exclamou ela – você está aqui? É você mesmo?
Seu coração disparou, e, numa fração de segundo, toda a química da paixão explodiu em seu corpo. Da base de seu cérebro, a glândula hipófise anterior despejou uma quantidade significativa de oxitocina, seus neurônios imediatamente secretaram os neurotransmissores da alegria, dopamina e serotonina, e todo o seu corpo se transformou, num processo químico muito semelhante ao do stress: sua pressão sanguínea aumentou, seu cérebro ordenou que a glândula adrenal incrementasse a produção de adrenalina e cortisol e que seus ovários caprichassem na testosterona e no estrogênio. Com o coração batendo mais rápido, suas faces coraram, pelo aumento da circulação periférica. Seu corpo estremeceu e suas pupilas se dilataram para fitar, dentro dos olhos dele, o seu amor refletindo-se.

Quanto à George, pela extrema surpresa e pelo choque de ter sido novamente lançado aos braços de um amor que, há tantos anos, julgava perdido para sempre, a única resposta possível foi abraçá-la e um beijo apaixonado arrancou sorrisos das pessoas que por ali passavam.

-- Estou eu, por acaso, em 2019? – perguntou ele, fitando-a nos olhos.

-- Sim, sim, meu amor – respondeu Susana, a voz embargada, os olhos marejados pela emoção – Eu estava tentando alcançar você, viajar novamente no tempo... e eis que você está aqui! E, olhando atentamente para ele, disse: -- Você está mais velho... – e riu – noto pequenas linhas ao redor dos seus olhos, das quais não me recordava... e alguns cabelos brancos... De que ano você veio? (Susana mal perguntara e já sentia o ridículo da situação, pois para ela a pergunta soara tão natural como se tivesse perguntado que linha de metrô ele tomara para chegar até ali)

-- 1919, dia 9 de março – respondeu ele.

Um mês apenas, antes de sua morte e nove anos depois da minha partida – pensou ela.

-- Meu Deus! – exclamou ele – O que é isso? Vejo, para além das margens da represa, um paliteiro daqueles edifícios que você me dizia existirem...
E, do outro lado, onde eu construí um bangalô, cercado por floresta por todos os lados... Agora cercado por casas e ruas... meu Deus! A cidade chegou até aqui! E quanta gente tem aqui... Sim, você me disse... agora o Castelo é um clube...

Com a absoluta certeza de que jamais poderia amar Leo da maneira que amava George, Susana puxou-o pelo braço:
-- Venha, vamos sair daqui do caminho das árvores. Venha ver como está hoje o seu Castelo. Vou lhe mostrar tudo, como mostrei a Leo... Leo é um descendente seu que encontrei aqui no dia em que voltei para o futuro, aqui, sob as árvores, um descendente seu me esperava...

Então, enquanto caminhavam pelo clube e Susana ia lhe mostrando todas as mudanças, tudo o que se construíra em mais de um século, contou a ele o que descobrira sobre ele, Carmen, o bangalô... só não lhe contou sobre a sua morte. Quando concluiu, George perguntou:
-- Bem por tudo o que você está me dizendo, deverei dizer que existe uma linha passando exatamente pelo nosso caminho das árvores, atravessando as águas, passando pelo meu bangalô... E essa linha é um Portal do Tempo.

-- Sim – respondeu Susana – É a única explicação, se é que tudo isso tem alguma explicação. O seu neto, aquele que é a sua cara, diz que é um engodo imaginar que a vida tenha alguma lógica.

-- Eu pensava – disse George – que nunca mais nos encontraríamos, você e eu.

Tinham sentado num velho tronco de árvore, na parte normalmente mais deserta da praia do Castelo. George estava espantado com os trajes das pessoas, principalmente das mulheres – “todas seminuas”, ele dissera. Espantava-se também com a aparência de todos, que lhe pareciam jovens, corados, cheios de vitalidade. E espantava-se ainda pelo fato de ninguém parecer espantado por ver circulando por ali um homem em trajes do começo do século XX.

-- Todos estão acostumados a ver de tudo, hoje em dia – riu Susana quando ele lhe falou sobre isso.

-- Depois que você partiu – disse ele, subitamente triste – eu pensei estar apaixonado por sua bisavó, você sabe disso, você sabe que eu e ela somos amantes, embora ela esteja noiva de um paulistano de família ilustre, o que eu, aliás, não sou. Devo deduzir que você, assim como eu, encontrou o amor nesse meu descendente que você diz ser igual, fisicamente a mim...

-- Essa é a grande questão – disse ela, tomando-lhe a mão – fisicamente igual, mas não é você. E é a você que eu amo e passarei o resto da minha vida com essa certeza.

-- Estou aqui agora – disse ele, com amargura – certamente numa outra curva fora do tempo linear, não sabemos quanto isso vai durar, não sabemos quando eu serei transportado de volta, mas estou certo de que voltaremos, você e eu, para o momento da minha recente chegada. Parece que a vida, com a sua falta de lógica, está brincando conosco.

-- O importante é que estamos juntos novamente – disse ela, decidida. – Só isso é que me importa.

-- Vamos fugir – respondeu ele – Leve-me naquele seu Ford, que vi na fotografia do seu celular, para longe daqui. Vamos sair daqui. Quero ver a São Paulo do seu tempo, mostre-me.

-- Não sei se você vai gostar do que verá ... – riu ela.

Começaram a subir, as mãos entrelaçadas, de volta para o Castelo e para a portaria do clube. Mas quando passaram pelo caminho das árvores, Susana viu, em desespero, a agora velha conhecida névoa e, quando esta se dissipou, lá estava ela, sentada sozinha num dos bancos de cimento, exatamente como estava quando George surgira ao seu lado.

Eu queria tanto voltar para ele... Meu pensamento o trouxe volta, ainda que por esse breve momento. Ou terei simplesmente sonhado?

Sabia, no entanto, que não fôra um sonho. E, sentindo uma dor enorme, uma dor que ela julgara já ter superado, percebeu – exatamente como Carmen percebera ao ver os fantasmas do futuro – que não queria passar a vida esperando que uma bolha, uma curva, alguma coisa no Tempo, a jogasse de volta para os sentimentos que, no final, a faziam sofrer. Percebeu que não era possível, nem para ela e nem para ele, viver em dois tempos tão diferentes. Percebeu que, por mais que o amasse, não queria repetir a experiência que acabara de viver. George pertencia ao começo do século XX e ela, ao século XXI. Trataria, daqui em diante, de trabalhar na edição do livro de Carmen e George, com Leo. Trataria, daqui em diante, de viver com o amor de Leo, que não era George, mas que era real e a amava. Tinha sua vida, seus pais, seu trabalho, e agora também tinha Leo. Toda a aventura que vivera em 1910 estava definitivamente encerrada e assim ficaria porque era assim que ela queria que fosse e, com a força de seu pensamento e de sua vontade, nunca mais permitiria que névoas a levassem para fora de seu Tempo. George estava morto, há um século. E essa fôra a despedida deles, concluiu ela.

Com os olhos cheios de lágrimas, subiu pela última vez a rampa das árvores pequenas e saiu do Castelo, agora cercado pela cidade, com seus cheiros, seu trânsito insano, seu ar podre. Nunca mais voltaria lá, ao Castelo. Viveria, daqui para a frente, em seu próprio tempo. E, -- pensou com um sorriso irônico – sua mãe teria uma bela história para contar em seu novo livro.



Capítulo 22 – História Inventada

George viu a névoa se dissipar. Estava outra vez sob as grandes e frondosas árvores de seu próprio tempo, copo na mão, o olhar reprobatório da governanta.
Com mil demônios, será que essa Matilde está sempre por perto quando volto das minhas viagens no Tempo? – pensou ele.

-- O almoço está servido – disse a governanta.

Uma mesa para doze pessoas, e eu comendo sozinho.

-- Não tenho apetite – respondeu ele.

O olhar de Matilde se voltou para o copo, nas mãos dele. Esse escocês vai acabar te matando -- pensou ela -– mas disse apenas:
-- Como o senhor quiser. -- E voltou-se em direção à porta da adega, que dava acesso direto à cozinha do Castelo.

George desceu pelo caminho das árvores até aquele ponto, na praia, onde há pouco, mas em 2019, estivera com Susana. As margens despovoadas da represa, a solidão daqueles 3 alqueires de pura beleza, o Castelo reinando solitário, erguendo-se em meio ao verde... Tudo isso se transformaria nas próximas décadas.

O Castelo, no tempo de Susana, estava cercado por inúmeras outras edificações. Um enorme salão de festas, um terraço que dava para um conjunto de piscinas, alguns bons metros abaixo, e, sob o terraço, vestiários, sauna, berçário... No lugar onde estava agora a discreta edícula branca, com seus aposentos para empregados da casa e outras dependências de serviço, no tempo de Susana estava um bar, que servia às piscinas, cercado por mesas brancas e guarda-sóis coloridos. Adiante e ainda mais abaixo, quadras de tênis e de outros esportes e um galpão para o jogo da bocha (do qual ele jamais ouvira falar). Depois dessa verdadeira praça desportiva, estava a praia, a parte mais deserta da praia. Esse era o lado à direita do próprio Castelo e à direita da rampa de árvores. Descendo para o lado esquerdo, um ginásio esportivo coberto, com mais uma piscina (aquecida, dissera Susana) e, já ao nível da praia, uma enorme estrutura, vasada e coberta, abrigava embarcações de todos os tipos. Também havia um bar, de dois andares, encostado à garagem dos barcos, também com mesas e guarda-sóis à frente dele. Um pouco para cima do bar, pelo gramado, espalhavam-se o que Susana chamara de “quiosques” com churrasqueiras onde as pessoas podiam assar carnes na brasa e comer ali mesmo... Pessoas... quantas pessoas circulavam por ali no densamente povoado tempo de Susana. Ele jamais poderia imaginar as enormes transformações que sofreria aquela que era, hoje, apenas a sua casa, com um grande bosque ao redor e o silêncio e a quietude do campo. A cidade, voraz, viria abraçar o Castelo, fazendo dele apenas um lugar de esporte e lazer para as muitas famílias que o frequentavam.

De fato, refletiu ele fitando as águas azuis da represa do Guarabitinga, eu o prefiro assim, quieto, calmo, com cheiro de mato. Prefiro o nosso Castelo majestoso, reinando sobre as árvores e a grama, imponente, e não apenas mais uma construção, mergulhada num mar de outras tantas construções. No tempo de Susana o Castelo sumia, sufocado entre as edificações à sua volta. George imaginava o que sua mãe diria, se pudesse ver no que se transformara sua linda residência, cheia de gente que mal reparava em sua beleza.

Talvez tivesse sido melhor não conhecer, afinal, a cidade de São Paulo que vislumbrara nas fotografias que Susana lhe mostrava quando estivera com ele, em 1910. Ela dissera mesmo que ele não gostaria de ver essa sua pacata cidade, num futuro coalhado de gente, gente por toda a parte. Esse é o meu tempo – concluiu em pensamentos, sorvendo o último gole de seu maravilhoso scotch – é aqui que tenho que viver, com Carmen, não com Susana, uma mulher que, para ele, mais se assemelhava a uma figura mitológica, uma deusa de um futuro pelo qual ele jamais ansiaria.

Num impulso, largando o copo de cristal na grama da praia, caminhou até o pequeno ancoradouro e pediu ao marinheiro, Abel, que trouxesse seu barco à vela. Atravessaria a represa em direção ao bangalô onde, tinha certeza, estava Carmen, naquela tarde de domingo, escrevendo. De repente, sua alma ansiava por ela, por Carmen, e sentiu que se livrara do amor de Susana, que nunca mais atravessaria o portal do tempo porque ali, ali estava a sua realidade, aquela era a sua vida. E a sua visão do futuro ficaria registrada nas páginas de seu livro, como uma história inventada.


Capítulo 23 – À Sombra da Morte

Na noite de 22 de março de 1919 o Castelo brilhava, completamente iluminado, acesas todas as luzes de todos os cômodos, decorada a entrada e a sala de vidros e a da lareira com flores brancas que subiam pelos corrimãos da escada. Um conjunto de câmara, instalado à frente da lareira, executava as mais alegres peças clássicas e carros e mais carros chegavam despejando a fina flor da elite paulistana que, em trajes de gala, vinha para comemorar o aniversário da anfitriã, Augusta. Lanternas, com velas acesas, estavam fixadas pelos troncos das árvores que ladeavam o caminho de pedras, para que os visitantes, que assim desejassem, pudessem descer até o ancoradouro, em frente ao caminho das árvores, e contemplar a lua sobre as águas da represa.

George viu Carmen, descendo do automóvel da família do noivo, magnífica em seu branco vestido bordado de pérolas, com gola de plumas e seu sorriso brilhante.

Uma alegria nervosa pairava pelos convidados da festa no Castelo naquela noite. Embora o país estivesse satisfeito com a sua recente (e modesta) participação na I Guerra Mundial, e estivesse vendo crescer a sua produção agrícola (através das importações que deram um salto para suprir a necessidade da Europa por matérias primas e produtos agrários) e também vendo crescer o seu então incipiente parque industrial, a sombra da morte ainda obscurecia muitos corações.

O país acabara de sair não só da Guerra como da maior pandemia da história – a chamada gripe espanhola – que vitimara inclusive o ilustre Rodrigues Alves, que, depois de ter governado o estado de São Paulo, tinha sido eleito presidente do país, para o seu segundo mandato, quando a gripe o abateu. Muitos traziam na alma a tristeza pela barbárie do conflito mundial que se encerrara no ano anterior e pela perda de entes queridos, já que poucos escapavam com vida do terrível vírus que acabara por matar mais de 35 mil brasileiros e milhões de pessoas em todo o globo. Rodrigues Alves falecera há muito pouco tempo, em 16 de janeiro daquele ano, e medidas sanitárias ainda vigoravam, evitando aglomerações por toda a cidade.

Ainda assim, os Meyer decidiram comemorar a vida, o aniversário de Augusta, com uma festa em alto estilo, acreditando que não só a tristeza da Guerra, mas também a do devastador vírus da gripe não seriam superadas sem a imposição da alegria. E alegria era festa.

Havia ainda um outro significado oculto naquela comemoração. Um significado que pouco diria aos brasileiros, mas estava incrustado na alma europeia de Augusta: na sua terra, aquela era a noite do equinócio de Primavera. Era a noite das festas pagãs da Baixa Idade Média. Os padres católicos haviam transformado todas aquelas festas em datas da sua Igreja, distorcendo-lhes o real significado. Aqui, no Hemisfério Sul, era o equinócio do outono, mas, ainda assim, era também o começo de um novo ano astral, o recomeço da dança das constelações, no Zodíaco. Para seus fúteis e racionais convidados, o Castelo comemorava o aniversário de sua matriarca. Para Evelyn e Augusta, porém, a comemoração era a da própria vida e dos ciclos da vida.

Foi, de fato, uma noite memorável e os principais jornais da cidade estampavam elogios, no dia seguinte, aos anfitriões, ao seu bom gosto e à sua capacidade de bem receber famílias acostumadas ao luxo e ao privilégio.

O sol nascia quando os últimos automóveis deixaram o Castelo. Carmen foi convidada por Evelyn a ficar para que passassem juntas o domingo, mesmo assim voltou para a cidade no carro da família do noivo, porque não desejava ser alvo de fuxicos maldosos e, muito menos, expor o noivo – a quem sinceramente estimava e respeitava – a uma possível humilhação pública.

Antonio, por sua vez, participara da conversa entre cavalheiros sobre um encontro de exportadores que aconteceria no dia 9 de abril, dali a pouco mais de duas semanas, na cidade de Santos. George, que era um entusiasta dos modernos automóveis, gabava-se de descer a Serra do Mar dirigindo o seu Ford em boa velocidade e vencendo o desafio das curvas fechadas com que a estrada o brindava. Uma ideia então começou a se formar na cabeça de Antonio. Aquela talvez fosse uma ótima oportunidade para se livrar do rival e convencer de vez a noiva a marcar o casamento, sempre adiado por mil desculpas pouco convincentes. Não que Antonio se importasse muito com o caso de amor de Carmen e George. O que ele esperava dela, porém, era que não os expusesse ao ridículo. Antonio estava plenamente convencido de que Carmen seria a esposa ideal para ele, a união ideal de duas grandes fortunas locais e a mãe adequada para os filhos dele. Não se importaria se ela tivesse um amante, mas com discrição. Naquela festa mesmo, ele vira os olhares zombeteiros e ouvira as insinuações maldosas sobre George e sua noiva. E isso ele não estava disposto a suportar.

Assim, logo na segunda feira, tratou de levar ele mesmo o seu automóvel a uma das poucas oficinas mecânicas da cidade, onde George dissera sempre mandar o chofer levar seu carro, antes de colocá-lo na estrada.

Na quarta-feira, um dos mecânicos da oficina encontrou-se com Antonio na Praça do Patriarca. Caminharam, Antonio dois passos à frente do mecânico, e conversaram discretamente, sem sequer olhar um para o outro. Ninguém, na praça mais movimentada da cidade, notou que o rico herdeiro de uma das mais ilustres famílias locais, trocava informações com um simples mecânico. Mais adiante, afastando-se do jovem operário, Antonio jogou um pacote de papel pardo numa lixeira. Pouco depois, o jovem recolheu o pacote. Sabia o que tinha que fazer para que a ponta de eixo do Ford de George não resistisse a muitas curvas em velocidade.


Capítulo 24 – O Ford Fênix

-- Veja, Susana – exclamou Leo, grudado à tela de seu computador – Aqui no site do meu tio está uma foto incrível, uma foto do carro de George, ou do que restou dele, sendo içado de volta à estrada. Diz aqui que o carro rolou desfiladeiro abaixo, certamente depois de derrapar numa curva. O corpo dele foi atirado a mais de cem metros de distância do local onde o automóvel foi encontrado.

Passados alguns meses desde sua última aventura fora do tempo linear, Susana já podia pensar em George sem sentir aquela angústia, aquela frustração. Aos poucos, Leo estava tomando o lugar dele no coração dela.
-- Que horror! – exclamou ela diante da fotografia – Um negócio macabro esse de fotografar carros acidentados.

-- Naquele tempo um desastre automobilístico dessas proporções era notícia em todos os jornais. A morte na estrada não era uma coisa banalizada como o é hoje. Imagine, morre mais gente nas estradas brasileiras num fim de semana prolongado do que em um desastre de avião. No entanto, o desastre aéreo comove a arquibancada enquanto que ninguém presta atenção à morte de famílias inteiras, em acidentes rodoviários. É um contrassenso!

-- Isso deve ser porque o acidente na estrada sempre parece ser culpa dos motoristas... – disse ela, sem muita convicção.

-- Veja – continuou ele, descendo a tela – aqui está a reprodução da página de O Estado de São Paulo... o obituário dele e a reportagem sobre o acidente, veja, Susana, é a mesma página de jornal que nós dois encontramos na cozinha do bangalô, quando viajamos no tempo – e leu o que o jornal dizia – “a grande tragédia que se abateu sobre a família dos importantes industriais paulistanos, ceifando a vida de seu único herdeiro”.

-- Pois é – zombou Susana – em 1919 ninguém consideraria Evelyn como herdeira, por ser ela uma mulher.

-- E diz ainda – continuou Leo, sem dar atenção ao aparte de Susana –, na reportagem, que o jovem George era conhecido por sua paixão por automóveis e por dirigir em velocidades altas e que, muito provavelmente, essa teria sido a causa da derrapagem de seu carro, numa das muitas curvas fechadas da serra do Mar.

-- Interessante – disse Susana -nas duas semanas que passei com os Meyer, em 1910, jamais vi George à direção. Era sempre o chofer da família quem conduzia o carro.

-- Ah... – fez Leo – Muito provavelmente porque os automóveis, em 1910, ainda não eram vistos como lazer, diversão, competição. Eram carroças motorizadas, simples meios de transporte. Mas na década seguinte já aconteciam corridas de carros-passeio na Avenida Paulista. Os veículos evoluíram consideravelmente e tornaram-se um objeto de diversão para as classes abastadas.

-- Esse jornal digitalizado – disse Susana – certamente veio do arquivo do Estadão. Será que encontraríamos alguma coisa sobre o casamento de Carmen com Antonio Expedito? Até hoje, na família, comenta-se que esse casamento arrastou multidões até a igreja e que a festa, na mansão dos Expedito, durou quase 24 horas, tendo começado logo após a cerimônia por volta de meio dia. Minha mãe sempre comenta isso como um exemplo da idolatria que o povo tem pelas figuras públicas. Carmen, com seus livros e suas ousadas crônicas no jornal e Antonio, por ser um dos mais ricos herdeiros da cidade, eram idolatrados como o são hoje os membros da família real britânica, ou as fugidias celebridades da televisão e, agora, das redes sociais. Deve ter gerado matérias em jornais e revistas. A cerimônia mexeu até com a economia da cidade, movimentando ateliers de costura, cabeleireiros, lotando hotéis pelos convidados vindos de fora, lotando táxis, restaurantes, cafés...

Mas Leo já não estava prestando atenção. Acabara de encontrar uma informação ainda mais surpreendente. Seu tio Alberto, numa das muitas crônicas de memória familiar que publicara no site, contava que todas as peças do automóvel de George tinham sido recolhidas e que, durante mais de um ano, o velho Meyer pagara a mecânicos e funileiros para que, na garagem do Castelo, reconstruíssem o carro, desamassando cada lataria, remendando as partes de madeira e de tecido, reconstruindo o motor, a caixa de câmbio... tudo enfim. E, depois de pronto, o automóvel ficara ali, exposto bem na entrada do Castelo, numa redoma especialmente construída para ele, com paredes envidraçadas e telhas vermelhas, como as do Castelo. Quanto aos pais de George, nunca mais entraram num automóvel, mantinham uma luxuosa carruagem e com ela se deslocavam pela cidade, causando espécie e um sentimento de respeito nos que nela reparavam e conheciam a história.

-- Meu Deus! – disse Susana – Será que esse carro ainda existe?

-- Se existe – respondeu Leo – certamente está nas mãos de algum colecionador.

-- Procure no Google! – exclamou ela. —Veja quem são os colecionadores de automóveis antigos em São Paulo.

Para a surpresa deles, depois de alguma pesquisa, descobriram que o carro dos Meyer era famoso entre os colecionadores. Chamavam-no de “o Ford Fênix” e ele estava agora, um século depois, com Dr. Júlio Carvalho, um conhecido colecionador de automóveis antigos e respeitado clínico geral da zona norte de São Paulo. Dr. Júlio pagara uma pequena fortuna por ele, num leilão do clube dos colecionadores.

Leo e Susana tiveram que marcar um consulta com ele, depois de um mês de frustradas tentativas de entrar em contato. Uma consulta caríssima e particular e o médico caiu na risada quando soube o motivo dos dois jovens o estarem procurando:
-- No painel do Fênix – disse o médico – existe uma foto emoldurada de George Meyer. Você, meu jovem, não precisa me dizer que é descendente dele. Vocês são praticamente iguais. Se vocês tivessem dito à minha secretária o motivo pelo qual queriam me ver, eu os teria atendido com prazer. Gostariam de ver o Fênix, então? Eu tenho um grande galpão, na minha chácara em Atibaia e lá mantenho meus carros. Dois mecânicos se encarregam de mantê-los limpos, brilhantes e funcionando. Terei muito prazer em receber vocês lá no próximo domingo.

É claro que eles tinham dito muitas vezes à secretária qual era o motivo de estarem entrando em contato.
-- Secretária de médico famoso é uma raça terrível – comentou Susana – Elas se julgam mais importantes do que eles.

Leo riu:
-- Não é só de médico, não. A minha secretária, na agência, é um verdadeiro bunker de guerra, ninguém passa por ela...

No domingo, depois de receber os jovens na chácara de Atibaia, Dr. Júlio explicava:
-- Os carros antigos, de colecionadores, geralmente não são tão antigos assim. A maioria é da década de 1960 para cá. Raros são os das décadas anteriores. Da década de 1910 e 1920 existem pouquíssimos no Brasil. O Ford Fênix é quase uma lenda entre os colecionadores. A Federação Brasileira de Veículos Antigos é responsável pelo fornecimento de uma Certificação – a Placa Preta – que autentica a origem e as perfeitas condições dos veículos com 30 anos de fabricação ou mais. O Fênix jamais conseguiu a Placa Preta porque muitas de suas peças originais foram substituídas, assim como os bancos de couro, por terem sido completamente destruídas ou perdidas no local do acidente. Mesmo assim, a reconstrução do carro é alguma coisa de muito impressionante. E mesmo sem a tal da Placa Preta era um dos automóveis antigos de maior valor, dada a sua história singular.

-- Por exemplo – continuava o Dr. Júlio – um Ford Victoria, 1934, como esse aqui (e apontava orgulhoso para o carro de um azul marinho brilhante) pode custar até 300 mil reais, enquanto um Porsche dos anos 1960 vale apenas entre 25 e 70 mil. Mas o Fênix vale muito mais... O João Carlos, um dos meus mecânicos, estudou atentamente o Fênix, analisou todo o trabalho de recuperação do carro, feito com os recursos da época, é claro, fotografou cada emenda, cada solda, cada parte da carroceria que foi recuperada e desamassada. Acreditem, já existia um verdadeiro “martelinho de ouro” naquele tempo.

-- Nós gostaríamos de ver essas fotos e, se possível, de conversar com esse mecânico. – disse Leo. – Como já lhe expliquei, doutor, estamos escrevendo um livro sobre esse nosso antepassado, o George Meyer, e qualquer informação que tenhamos nos será de grande valia.

-- O João está aqui todas as terças e quintas, em horário comercial.

Enquanto o médico e Leo conversavam, Susana orbitava ao redor do carro de George. Não era o mesmo carro que ela vira com a família em 1910. Era um modelo mais avançado. No entanto, saber que seu amor morrera ali, naquele automóvel, colocava-lhe lágrimas nos olhos e arrepios na alma. O carro estava ali, até hoje. O Castelo estava lá, até hoje. Muitas coisas permanecem, apenas nós – refletiu ela – estamos aqui numa mera e breve passagem.

Na terça feira, Leo e Susana voltaram ao galpão dos automóveis antigos. João Carlos, o mecânico, os recebeu e mostrou a eles os gráficos, as fotos, as simulações, toda a documentação sobre a reconstrução do Fênix, que mantinha em seu laptop. Era um material impressionante mesmo.

-- Existe um detalhe muito interessante – disse, por fim, o mecânico – Vejam aqui a foto ampliada dessa ponta de eixo. Ela foi soldada, como outras partes do carro também o foram. Todas as outras, porém, foram partidas de maneira irregular, no acidente. Mas essa ponta de eixo tem uma solda que une duas partes absolutamente regulares, exceto por uma extremidade. Isso indica que ela foi cortada, por instrumento e não como resultado do acidente.

-- Como assim? – disse Susana, espantada.

-- Essa emenda pode ser resultado de algum conserto feito no carro, anterior ao acidente, mas é bem improvável que alguém precisasse cortar assim, quase completamente, esse eixo. Por que? Para que? Isso é muito intrigante e, de fato, sugere que alguém tenha sabotado essa carro para torná-lo frágil e passível de um acidente, pois a ponta de eixo, presa apenas por uma extremidade, certamente se desprenderia, em algum momento, com o balanço do automóvel.

-- O acidente teria sido, então, deliberadamente provocado por alguém? – perguntou Leo, espantado.

-- É o mais provável – respondeu João.

-- Mas – disse Susana, com a voz embargada – a partir do momento que o senhor descobriu isso deveria ter procurado as autoridades. Afinal, isso prova que não houve acidente, mas, sim, crime!

-- Moça – respondeu João Carlos com certa impaciência – Nós estamos falando de um fato ocorrido há cem anos passados. Quem iria investigar isso e por que? Todos os envolvidos estão mortos...

-- Sim, perdoe-me... Inclusive está há muito prescrito... de qualquer forma, trata-se de um crime que ficou impune! –suspirou ela.

-- Uma coisa infelizmente muito comum em nosso país, não é verdade? – disse ele.




 

CONTINUA...

Capítulo 25 - Revelações