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As Águas de Bolinhas e os Generais

Memória de Isabel Fomm de Vasconcellos

 

Eu era tão pequenininha, me lembro com alegria. Esse é um privilégio de quem foi amada. Lembrar-se de quando era tão pequenininha e lembrar-se com alegria. (Não fique com inveja. A inveja é destrutiva. Admire. A admiração constrói para você). Mas eu era tão pequenininha e acordava com os olhos cheios de remela, não podia abri-los porque os cílios colavam, os da pálpebra superior com os da inferior. A minha mãe trazia água boricada e passava nos meus olhos para que eu pudesse abri-los. Isso era o resultado da minha primeira viagem de avião.

Nós tínhamos ido, minha mãe e eu, de avião, para Belo Horizonte, onde morava uma tia, irmã de minha mãe, que se casara com um mineiro. Lembro-me de achar muito legal acordar e chamar alguém para me abrir os olhos, que não abriam sozinhos, de tanta remela. Sentia o enorme carinho que havia naquele gesto simples de limpar meus olhos com um chumaço de algodão umedecido.

1954. Eu tinha 3 anos. Mas me lembro como se fosse hoje.

1954 foi o ano do quarto centenário de São Paulo.

Havia uma placa comemorativa na fachada da nossa casa e uma das minhas lembranças, daqueles dias de olhos grudados, é do general Juarez Távora acariciando meu rosto, no jardim, abaixo da tal placa do quarto centenário, e dizendo: linda menina.

Ele – o general – era candidato à presidência da república e tinha ido à nossa casa para gravar um jingle, numa bolacha de 78 RPM ( o trisavô do CD) onde Luiz Gonzaga (Gonzagão, o rei do baião e pai do Gonzaguinha) cantava: “O marechal quebrou a mesa com um murro, nessa cumbuca minha mão limpa não boto. Eu não vou nessa não pois não sou burro, vamos fazer revolução, mas pelo voto. Vamos libertar o Brasil de uma vez, a 3 de outubro elegendo Juarez”.

O general e o marechal perderam as eleições para Juscelino Kubistchek, mas eu jamais pude esquecer aquele jingle. Naquele tempo, os discos de vinil eram gravados um a um, o estúdio de som e laboratório de filmes de cinema do meu pai eram num pedaço da nossa casa, e eu ouvi o tal jingle tantas vezes que, até hoje, 6 décadas depois, o sei de cor.

Também nunca esqueci do general, uma figura impressionante para uma menininhazinha de 3 anos. Depois aprendi que ele fora um político absolutamente contraditório e talvez oportunista. Não sei se ele mudava de ideia por mudar sinceramente de lado ou... O fato é que ele lutou no “18 do Forte” em 1922; em 1926 integrava a Coluna Prestes, em 1930 apoiou Getúlio no golpe dos gaúchos e foi seu Ministro da Agricultura; em 1932 lutou na Revolução Constitucionalista de São Paulo, contra os paulistas; nos anos 1940 foi adido militar no Chile e depois brigou com Getúlio e ajudou a depô-lo em 1945; era novamente oposição quando Vargas foi eleito e voltou ao poder e dizem que foi um dos que contribuiu para o suicídio de Getúlio Vargas, ocorrido em 1954, mais ou menos na época em que eu tomava água mineral gaseificada nas minhas primeiras aventuras entre as nuvens.

Mas aqueles eram os anos 1950, o pós guerra, quando o mundo precisava acreditar que seria possível esquecer o horror dos corpos queimados, das experiências “científicas” com cobaias humanas, o horror a intolerância e da discriminação. Os americanos, vencedores, entraram na moda e o rock and roll era apenas uma criancinha como eu, assim também como a televisão. O Passado? Ora, apenas ficou pra trás. Olhos no horizonte.

Juscelino ganhou a eleição, derrotando o marechal Lott e Juarez, prometendo levar o país a crescer 50 anos em apenas 5.

 

Enquanto eu, pobre de mim, era apenas uma garotinha que, depois da sua primeira viagem de avião, acordava com os cílios grudados e não queria ir mais aos aviões porque lá só serviam “água de bolinha” que eu detestava e detesto até hoje. Líquidos que fervilham jamais consumi, nunca tomei refrigerantes e tive que esperar duas décadas para descobrir que a cerveja era diferente.

 

Ah... Essa é uma história divertida. Em 1974, vinte anos depois, fui morar na Bahia, eu, paulistana da gema, nascida num velho casarão da Rua Vergueiro, a pouco mais de 1km de onde moro agora, na Av. Paulista. Quando a moda era vir de lá pra cá, fiz o inverso: Fui morar lá em Salvador porque queria acreditar que a terra de Caetano Veloso e de Jorge Amado seria um lugar melhor para se fugir do pesadelo da ditadura militar do que a minha própria terra. Depois do golpe de 1 de abril de 1964, o velho Juarez Távora virou Ministro dos Transportes e o Brasil só tinha presidentes generais, não tinha mais eleição e muito menos jingle político cantado pelo Luiz Gonzaga. Além de tudo isso, pra me levar para a capital baiana, havia a imensa conveniência de meu irmão Alvan ser então diretor de programação da emissora de TV afiliada da Rede Globo.

 

Aluguei uma casa velha na Pituba, de frente para o mar. E só consegui alugar porque a proprietária era uma mulher e eu ganhei ela na base de muita conversa fiada e romântica, já que ela tinha o mesmo nome da minha mãe, Wanda, e que poderia perceber – como nenhum homem baiano locador percebia – que eu era uma mulher de vanguarda, que estava em Salvador para trabalhar e não para me prostituir.

 

Arranjei uma empregada maravilhosa, chamada Rosália, que tinha pouco mais de trinta anos de idade e sete filhos, cada um de pai diferente. Ela explicava: “—Pois é Dona Bel. A gente arruma um homem, vai tudo bem até que a gente engravida... Aí, ele se manda.”

Perguntei: -- E a pílula? Você não toma pílula?

O médico do posto de saúde se negara a dar a receita e pílula, naquele tempo, só com receita. Mas em São Paulo se podia comprar sem receita; então a minha mãe passou a mandar, pelo malote da Globo, duas cartelas por mês da pílula mais moderna e de menor dosagem hormonal: pra mim e pra Rosália.

Aprendi a gostar e aprendi a respeitar a Rosália, que era um ser humano muito bacana.

 

Eu trabalhava como redatora na maior agência de propaganda de lá. Antes de sair para o trabalho, todos os dias, eu ia correr na praia. Depois da corrida e do mergulho, parava num barraca para tomar água de coco e depois “subia” (a praia na Orla de Salvador, naquele trecho, é abaixo do nível da rua) para tomar o café que a Rosália preparava.

Um dia o dono da barraca me diz: Hoje não tem água de coco. Só cerveja.

E eu, morta de sede, respondo:

-- Bom, me dá uma lata, então. Não gosto de cerveja, mas vou encarar um gole.

Era na lata. Se fosse no copo eu não encararia. Aquela gosminha que vai ficando no copo da cerveja, principalmente no de chopp, me lembrava a gosminha que havia na ondinha que batia na praia da represa do Guarapiranga. Uma gosminha, já naquele tempo, da poluição. Um nojo.

 

Abri a lata e dei o gole. Meu Deus!!! Que coisa maravilhosa era aquela bebida! Gelada, debaixo do sol tropical, depois de uma corrida e um salgado mergulho na praia da Pituba... Era o néctar dos deuses.

E eu tinha vivido 23 anos sem provar essa maravilha. Porque fervilhava, como a “água de bolinha” do avião, porque deixava uma gosminha no copo, como as ondinhas da Guarapiranga morrendo na praia. Que estupidez a minha!

Então, numa manhã de sol, na magnífica praia baiana, vivendo o horror da ditadura militar brasileira e encarando o enorme preconceito nordestino com relação às mulheres livres, como eu e a Rosália, eu descobri, que apesar do contexto, das bolinhas e dos generais, era possível viver um momento de grande prazer e alegria numa lata de cerveja! Fiz as pazes com as bolinhas.

De lá para cá, toda vez que abro uma cerveja, eu me lembro do Juarez Távora.  

 

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José Eduardo Pereira Lima Gosto muito desses relatos das lembranças.