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A Primeira Perda

 

Memória de Isabel Fomm de Vasconcellos

1. O Contexto

 

Sou do tempo que nascer não era um ato cirúrgico, custava baratinho e não obrigava ninguém a sair correndo pro hospital. Quando a minha mãe começou a sentir os primeiros sinais do parto apenas telefonou pra parteira e pronto. Sei que, de fato, isso não era tão seguro quanto estar num hospital com todos os recursos disponíveis para qualquer intercorrência, mas que é bem mais romântico, isso é. (Além do mais, tem a questão do acesso e da qualidade do atendimento hospitalar, mas hoje não vou falar sobre esse assunto, que é outra conversa).

 

Na verdade, pra ser honesta, não sei se a parteira foi chamada por telefone. Naquele tempo telefone era um privilégio, não estava ao alcance de todos como hoje. Nasci numa casa cheia de privilégios, aliás, tinha telefone, dois automóveis (os carros eram caros demais...) e – o máximo!! – televisão. Além de laboratórios de fotografia e de cinema, artes que também eram privilégios de poucos iniciados e meu pai era um desses.  Pois é. Falando assim parece que eu nasci há dois séculos. Não. Foi apenas em 1951...

 

No momento em que eu vim ao mundo, a casa abrigava alguns televizinhos e todos, moradores e vizinhos, estavam completamente entretidos com aquela maravilha tecnológica: a TV (preto e branco, cores no Brasil só em 1972, quando eu já tinha atingido a maioridade legal).  Dei meu primeiro grito às 22h15 do dia 13 de maio de 1951, domingo e Dia das Mães. (Até morrer minha mãe não tinha muita certeza se eu fora um presente ou um presente de grego...).

 

2. A Personagem

 

Hoje, de todos os que estavam na casa naquela noite, só sobramos eu e a minha tia Jeannette, que tem agora 90 anos. O resto está morto e enterrado, ou cremado: meus pais, irmãos, parteira, tio José, vovó Amélia, vovó Carmen, Leca... Pois é, a Leca. Quem era a Leca? Tia? Prima? Quem? A Leca era uma “agregada” da família. Naquele tempo ninguém achava nada demais em abrigar uma criança órfã, sem recursos, e – em troca – usufruir do trabalho dela.

 

A Leca era a governanta da casa. E também a cozinheira. E também a minha babá. E também um membro da família, com direito a sentar-se à mesa conosco, participar de todas as festas, enterros, batizados e eteceteras. Minha mãe trabalhava, era modista, tinha uma oficina de costura, naquela época com algumas costureiras para ajudá-la a atender a demanda. Não existia prêt-à-porter e muito menos boutiques e shoppings. Nossa! Como era tudo tão diferente!

 

Minha mãe não sabia absolutamente nada das lidas domésticas, só sabia administrar o dinheiro, tanto o proveniente do trabalho dela quanto o do meu pai. Foi apenas quando ficamos bem mais pobres, no meio dos anos 1970, que a minha mãe aprendeu a cozinhar e a cuidar da casa.

 

Mas, voltando à Leca, o nome dela era Alice Kneidel e ela veio de Juiz de Fora, Minas Gerais, onde a família da minha avó tinha uma fazenda. Quando eu nasci ela já estava com a minha mãe desde 1933, ano em que meus pais se casaram. Mas creio que antes disso já estivesse com a minha avó. Ela nascera na virada do século, em 1899. Eu, e todo aquele bando de crianças que eram meus primos e se reuniam na nossa casa nos Natais... Ah! Nós adorávamos a Leca. Afinal, era permitido raspar as panelas de brigadeiro e de outras delícias que ela preparava na cozinha e todos nós mediamos o nosso crescimento encostando nossas costas nas costas da Leca, que era baixinha, doidos pra ficar maiores que ela.

 

A Leca falava pouco e ouvia muito. Mas quando meus tios tinham algum problema, era pra Leca que contavam. Pra ela, todos tinham razão. Por exemplo, Um brigava com Outro. Primeiro entrava o Um na cozinha, mandava as empregadas saírem e despejava suas razões no ouvido da Leca. Ela dizia: “Claro, você está certo” e mais algumas palavras convenientes e tranquilizadoras. Depois vinha o Outro e tudo se repetia, inclusive o que a Leca respondia. Pra ela, os dois lados estavam certos. A mestre da conciliação!

 

Desde que me lembro, a Leca dormia no meu quarto (ou eu no quarto dela, sei lá). Em 1960 ela teve um derrame e morreu uma semana depois. Foi a minha primeira grande perda.

Durante um bom tempo, depois da morte dela, no escuro do meu quarto, antes de dormir, eu a via, do tamanho de uma estatueta, flutuando no ar.

 

Temos milhares de filmes e fotos da família em diferentes épocas ao longo do século passado. Só em uma, de antes de eu nascer, aparece alguém, num grupo, que eu julgo ser a Leca (acima, corte). Por que? Certamente ela fugia das câmeras. Mas ainda vou espiar os filmes domésticos do meu pai, antes de 1960, pra ver se encontro uma imagem dela, ainda que escondida, numa festa, sei lá. Talvez ela acreditasse, como tanta gente acreditava quando surgiram as primeiras câmeras de fotografia e depois de cinema, que as lentes “roubassem” um pouco da alma das pessoas.

Mas, embora sem a imagem impressa em celulóide ou em papel, a Leca ficou impressa no meu coração.

 

PS: encontrei! No filme do meu aniversário de 4 anos, na soleira da porta, com Joaquim Carlos e Zé Elias ao seu lado, lá está ela!!!

                                                       PS 2: veja filme onde ela aparece quase todo o tempo! Em Itararé, 1959, um ano antes de morrer.

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Vera Krausz

Eu lembro dela. Mesmo sendo bebezinha... uma cena na copa de tua casa. Falavam algo do feijão dela... Também um outro momento em que eu corri para o quintal pela porta de tela da cozinha. Grandes botijoes de gás. E ela foi atrás de mim. Mamãe ficou brava eu acho. Lembro de uma canal e tá de água de chuva... que eu tinha medo que me levasse... rsrs.

São imagens vivas...

Ela era bem pequena. Não me parecia quase uma pessoa grande. Mas era velhinha.

Claro que lembro muito melhor da vovó Amélia. .. aí tem muitas imagens. Mas a que eu mais gosto era a do potinho de bicarbonato de sódio. Eu adorava colocar o dedo.... e comer... rsrs

Isabel Fomm de Vasconcellos

Sim, tinhamos botijões de gás imensos. Era uma casa onde muito se cozinhava, muito se recebia, muito se abrigava. Amor, generosidade, afeto eram os seus maiores habitantes. Meus pais foram um grande privilégio, o maior que tive nessa vida!

 

 

Milton Martins comentou seu link.

Milton escreveu: "Gostei do texto sobre a 'primeira perda' e da Leca> Realmente há quem acredita ou acreditava que a foto tira um pouco da vida da gente..."

Vera Krausz comentou seu link.

Vera escreveu: "Desta vez você foi longe nas memórias... Sera que minha mãe se lembra da Leca?"

Antonius Inoxidavel Seiva (amigo de Mia Bruscato) comentou seu link.

Antonius Inoxidavel escreveu: "Adorei"

 

Jose Reynaldo Walther de Almeida comentou seu link.

Jose escreveu: "lembro até da fisionomia. Ela fazia as refeições junto com a família. Aquilo me chamava a atenção. Vanda e Alfredo estavam muito a frente do seu tempo..."