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Viagem à Bahia em Tempos de Ditadura

Memória de Isabel Fomm de Vasconcellos, para Ilca e Antonio Carlos (Tony) Moya

 

No começo dos anos de 1970, o Brasil vivia o auge da ditadura militar. A repressão policial a todo e qualquer cidadão que se manifestasse contra o regime estabelecido se tornava cada dia mais brutal e violenta. Grupos chamados paramilitares eram formados e, oficialmente, não existiam, eram negados pelos porta vozes dos governos, federal ou estadual. O mais famoso desses grupos era o bando que  possuía um sítio, para onde levavam todo e qualquer “suspeito” de conspirar contra o regime e lá o infeliz era barbaramente torturado.

 

Muito poucas pessoas tinham coragem de se manifestar contra o estado de arbítrio e violência que se instalara no Brasil. Geralmente, ter um preso político na família significava que todos os seus parentes e amigos estavam também sob risco de sofrer prisão e prisão era sinônimo de tortura. Você podia querer arriscar sua pele por seus ideais, mas não tinha o direito de arriscar também todos os seus parentes e amigos. A repressão à qualquer oposição política era, de fato, além de brutal, brutalmente eficiente.

 

Por outro lado, muita gente bem intencionada acreditava no então chamado “milagre brasileiro”, milagre esse que passamos anos e anos pagando em altos juros até hoje, diga-se de passagem.

Se, de um lado, a ditadura militar ia destruindo a educação e a cultura, exilando as mais brilhantes mentes do país, expulsando-as e instalando o reino da absoluta mediocridade e censura à imprensa e aos pensadores acadêmicos, por outro lado vendia à classe média, que crescia, a ilusão da prosperidade econômica e desafiava seus opositores com slogans como

“Brasil, ame-o ou deixe-o”.

 

Bem que eu, de saco cheio de tanta repressão e tanto sofrimento de ver e saber de amigos e conhecidos que eram presos e sofriam as mais bárbaras torturas, preferiria ter deixado o país. Mas isso também era muito difícil. Para sair do Brasil, só mesmo tendo sido preso e trocado por algum embaixador sequestrado ou tendo muito dinheiro. Para sair do país, naqueles tempos, era preciso fazer um tal de “depósito compulsório”, numa quantia em dinheiro que equivaleria ao preço de uns três automóveis. Só os ricos tinham o direito de ir e vir. Os ricos, os executivos de multinacionais e os políticos.

 

Na faculdade, o ambiente era de muito desânimo, no ano de 1973. As classes sempre tinham um ou dois “dedos-duros”, soldados da repressão, encarregados de denunciar professores e alunos que eles julgassem suspeitos de “subversão”. Os mestres mais corajosos davam aulas por metáforas. Todos os dias se tinha notícia de algum líder estudantil que “caíra” ou desaparecera. Um dos meus colegas na Escola de Cinema costumava cumprimentar seus pares com a frase:

- Boa noite. Prazer em vê-los ainda vivos.

 

Naquele ano, quando se aproximavam as férias de julho, eu acabara de deixar um emprego numa agência de propaganda e estava me dedicando a trabalhos free lancer de fotografia e texto. Minha grande amiga Ilca tinha prestado um concurso para a prefeitura municipal (onde, mais tarde, chegou a ser a diretora de recursos humanos) e esperava pelo resultado. Assim, estávamos relativamente livres para viajar. Eu sinceramente, na angústia dos meus 22 anos de idade e na impossibilidade de me expressar livremente em meu próprio país, queria sumir, ir morar na Europa, em algum país civilizado e não mais numa republiqueta idiota e tirana como era o Brasil de então. Poderia vender o meu fuska, juntar um dinheirinho, pagar o maldito compulsório, e me mandar, mas teria também que renunciar aos amigos, à família e, principalmente, aos meus pais, que eu amava de paixão. Sobre a minha angústia com a situação política do Brasil, um dia, meus pais me disseram, rindo:

- Minha filha, isso passa. Já vivemos tempos ditatoriais antes, na época do Getúlio, a gente dizia que eram tempos “de rolha” – todo mundo tinha uma rolha na boca.

 

Assim, um belo dia, andando de fuska pela Av. Rubem Berta, Ilca e eu resolvemos ir passar umas duas semanas na Bahia. E fomos, com pouco dinheiro no bolso, ela, eu e o irmãozinho dela, Tony, que tinha dezessete anos. Fomos no meu fuska, corajosamente, enfrentando as estradas brasileiras que não eram nem um pouco modernas, mas um pouco melhores do que são hoje.

Meu irmão Alvan, nesta época, era diretor da TV Aratu, então afiliada da Rede Globo, em Salvador.  Mas, em vez de nos instalarmos no apartamento dele na Barra, ficamos acampados nos canteiros da praia do Jardim de Alá.

Passamos dias maravilhosos, andando de fuska pelas praias da orla de Salvador, tocando violão ao luar, todas essas coisas que os jovens daquele tempo adoravam.

 

Na noite da véspera de nossa viagem de volta, nossa barraca foi cortada e, enquanto dormíamos, alguém levou nossas bolsas, uma das minhas caríssimas máquinas fotográficas e todo o nosso dinheiro.

Tivemos que pedir ajuda ao meu irmão que nos forneceu o dinheiro estritamente necessário para a viagem de volta. Compramos alguma coisa para comer nos dois ou três dias de viagem e reservamos o resto do dinheiro para a gasolina do fuska e para os pedágios (que, sim, já existiam!). E botamos o pé – aliás, as rodas – na estrada.

Quando estávamos a uns 300 quilômetros de Salvador, pela BR 116, a famosa Rio-Bahia, uma luzinha vermelha acendeu no painel do meu fuska.

- Pô, Ilca! Essa droga desse carro não está carregando a bateria.

Para piorar,  anoitecia e eu precisaria dos faróis.

Parei no acostamento. Abri a tampa do motor. Fiozinhos de cobre voavam. Lá se fora o “induzido”, uma peça cheia de fios de cobre enrolados, que fazia parte do sistema de recarga da bateria.

- Estamos fritos. Onde fica a cidade mais próxima?

Ilca consultou seu inseparável guia Quatro Rodas.

- Não é uma cidade, Bel. É uma localidade. Chama-se “Milagres”.

Bom. Tinhamos que rezar por um milagre. Tínhamos muitos quilômetros pela frente e a bateria do fuska ia ter que aguentar.

 

Quando chegamos a Milagres, o local estava em festa. Era dia 25 de julho, dia do motorista. Ninguém queria conversa com a gente. Oficina? Tem uma, mas o dono está na festa de São Cristóvão.

Cidade mais próxima?

Jequié.

Corajosamente, encaramos de novo a estrada. No escuro. Eu nem ousava ligar os faróis. E, naquele tempo, a estrada era um deserto. Rezavamos para que os caminhões, as maiores presenças nas rodovias daquele tempo, nos vissem antes de passar por cima de nós.

Afinal, chegamos a Jequié.

 

Ilca, com seu guia, anunciou:

- Tem concessionária Volkswagen.

E eu:

- E certamente aceitam cheques paulistanos.

Mas, quando chegamos lá, a concessionária estava fechada. Já era noite. Com muito custo, convencemos o porteiro a nos deixar estacionar no pátio e dormir dentro do carro. Já estávamos preparados para uma noite desconfortável, quando apareceu um sujeito que se apresentou como o contador da empresa. Narramos a ele o nosso draminha: assaltados, sem grana, tendo 1500 km de estradas pela frente e com o induzido destruído. Mas tinhamos cheques.

O nome dele era Tibúrcio. E Tibúrcio disse:

- Não. Está tudo errado. Vocês vão consertar o carro aqui, vai custar uma nota preta, esses caras de concessionária vão explorar vocês. Eu tenho um amigo que tem uma oficina. Ele vai abrir a oficina e ajudar vocês, assim, amanhã de manhã, vocês já poderão pegar a estrada.

- Mas não temos dinheiro – protestou a Ilca – O seu amigo vai levar uma semana para compensar o nosso cheque e não terá nenhuma garantia.

- A questão aqui, moça – respondeu o Tibúrcio – não é de dinheiro. A questão é a de três jovens paulistanos que vieram ao nosso estado passear e foram roubados. Vocês não vão sair da Bahia achando que o nosso povo é ladrão.

 

E, assim, quando eu me dei por mim, estava dentro do carro do Tibúrcio, um TL amarelo, que corria por estradinhas de terra e parava em casas muito humildes, catando homens simples. O carro ficou lotado. Lá estava eu, com quatro baianos do interior e mais o Tibúrcio. Fiquei apavorada. Eles vão me estuprar! Mas, sem falar quase nada, estávamos de volta à concessionária. Os homens empurraram meu fuska, que já nem dava partida, e fui seguindo o TL amarelo até um galpão meio afastado da cidade, onde ficava a tal oficina.

Fomos recebidos por um negro que tinha um dos mais belos sorrisos que eu já vira. Chamava-se Hilário e era o dono da oficina. A casa dele ficava nos fundos. Os homens que estavam conosco eram os funcionários da oficina, que Tibúrcio tirara do conforto de seus lares para que resolvessem o nosso problema. Hilário nos apresentou à sua família: nove filhos e a esposa, cujo nome me escapa à memória.

- Não se preocupe, Isabel. Vamos deixar seu carro novinho e amanhã de manhã vocês seguirão viagem com segurança.

E eu preocupadíssima com o dinheiro. Precisaria pagar o trabalho deles e mais as peças.

Hilário nos levou para a mesa de sua casa, onde sua esposa nos serviu um lanche. Havia uma fruta que eu nunca vira: umbu. Uma verdadeira delícia.

Tibúrcio então nos disse que ia nos levar para dormir na casa dele. Estávamos nos preparando para sair quando chegou uma caminhonete. Na direção, um típico “coronel” baiano, que parecia ter saído das páginas de um romance de Jorge Amado.  Com ele, mais quatro homens. Não pude evitar o pensamento: “jagunços”. Era Lomanto Júnior, que fora governador do estado. Imaginei que ele fosse “o senhor” daquelas terras e daquela pequena cidade. Talvez tivesse ido “conferir” a origem daqueles jovens forasteiros que éramos nós. Ou talvez apenas quisesse regular o motor da caminhonete.

 

No entanto a família do Hilário já sabia, porque estiverámos papeando durante o lanche, que eu era a “irmã da Rede Globo” e, inclusive, já tinham me encarregado de mandar para eles, pelo correio, as notícias do que iria acontecer nos próximos capítulos da novela das oito (que passava lá com uma semana de atraso em relação ao Rio e a São Paulo, porque os tapes dos capítulos eram enviados fisicamente por malotes, a embratel tinha apenas dois canais de satélite) e também fotos autografadas dos artistas.

Tibúrcio nos levou para a casa dele. Sua mulher, Aurina (na terceira foto à direita), botou os filhos para dormir no sofá da sala e nos instalou nas camas deles. Jantamos. Conversamos. Aurina perguntou se era verdade que São Paulo era tão grande que comportaria mais de 10 Jequiés. Rimos.

- Aurina, acho que dentro de São Paulo cabem não dez, mas trinta Jequiés.

Ela se recusou a acreditar. Disse que estávamos “mangando” dela.

 Dormimos como anjos.

 

Na manhã seguinte, lá estava o fuska, consertado, lavado e brilhando.

Fomos tomar café da manhã na casa do Hilário. Café da manhã baiano, que mais parece uma ceia. Mas Hilário não estava lá. Chegou pouco depois, carregando uma sacola cheia de umbus, que ele fora pegar no mato, para nos dar.

As crianças foram para a escola, despedidas, beijos, sorrisos. (Na foto ao lado, a família do Hilário)

Perguntei ao Hilário quanto eu lhe devia pelo serviço. Se ele queria um cheque ou se queria que eu fizesse uma remessa bancária para a sua conta. A resposta:

- Você não me deve nada.

Protestei. Não estava certo. A mão de obra, os funcionários, as peças, o trabalho...

- Olha, garota. Vocês foram roubados em Salvador. Isso é que não está certo. O povo da Bahia é um povo solidário. Vocês vem da cidade grande, podem até pensar que tudo funciona à base de dinheiro. Mas agora sabem que nem todos pensam assim. Escrevam para nós, se puderem contem o que vai acontecer na novela porque minha mulher vai adorar. E nós estamos felizes por termos novos amigos paulistas. Vão com Deus e dirija com cuidado, hein?

 

Assim, saímos de Jequié, Ilca, Tony e eu, completamente estarrecidos. Nosso carro estava limpo, cheiroso e em ordem. Fôramos tratados como reis. Estávamos estranhamente quietos. Ninguém falava nada dentro do carro.

Viajamos assim, quietos, por mais uns 200 quilômetros. De repente, na faixa oposta da pista, vimos um comboio do exército. Soldados armados, mais adiante, plantados no centro da pista, dirigiam o pouquíssimo trânsito e fizeram sinais para que continuássemos em frente. Pude ver, saindo da traseira de uma perua, um homem que parecia bêbado ou drogado, sendo conduzido por outros três, à paisana, para um canto da estrada, ao lado do acostamento. Tratei de continuar dirigindo, sem olhar muito pros homens, conduzindo o fuska nem muito depressa nem muito devagar, mas ainda espiando a cena pelo espelho retrovisor. O que seria aquilo, meu Deus?

No Brasil daqueles tempos, não era muito difícil de imaginar...

Voltamos para São Paulo com apenas um incidente. Já na Via Dutra, perto de Aparecida, rodamos na estrada. Estava chovendo e o fuska “flutuou”. Mas parou no acostamento, sem bater em nada, de ré. Foi um belo susto. No entanto, não um susto maior do que encontrar aquelas pessoas incríveis em Jequié.

 

Mandamos para eles, até o final da novela das oito, o resumo dos capítulos que eles ainda assistiriam.

Mais tarde, quando morei em Salvador, recebi na minha casa dois dos filhos do Hilário. Um foi cursar o colégio militar. Para o outro, arrumei um emprego na agência de propaganda onde eu trabalhava.

As famílias de Hilário e Tibúrcio, da pequena cidade de Jequié, tinham dado a nós, jovens ingênuos e idealistas, uma nova e grande esperança no povo do nosso país. Um país “arrolhado” pela prepotência da ditadura, um país com uma das piores distribuições de renda do planeta, mas feito também de gente simples e simplesmente boa.

 

Isabel 11 agosto 2007

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Alcides Saverio Blois Jr. Foi minha vida nos anos 70. Nada assustava a gente.
 

Antonio Neto Adorei o relato da viagem e da generosidade de Hilário e Tibúrcio. Tanto os nomes, como pessoas assim, não existem mais.
 

Marcio Leite Nossa! Agora eu senti ssudade de uma história que não é minha.

Diogo Carlos Matera Moya
Ótima viagem!

 

Diva I. Jacinto Que aventura ! Não dá para esquecer ! Parabéns para a Ilca ! Amiga muito querida ! Bj