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(Wilson Vicente, sd, Rua de Ouro Preto)

 

 

 

PAS,

Estou no Banho!

Por José Eduardo Pereira Lima, ZEDU.

 

 

Um cheiro de gás vagueava por toda a pequena ladeira de paralelepípedos. Alguém tinha se esquecido de se matar.

“Pas, estou no banho.”

O bilhete debatia-se preso no velho portão de ferro. Era o único sobrado ainda em pé na ladeira. Ratos atravessavam a rua, expulsos pelas demolições de antigas casas em frente àquela, que seriam substituídas por edifícios de apartamento. Paravam, olhavam para o bueiro e resolutamente entravam pelo porão do sobrado, que logo seria também derrubado e eles ficariam novamente sem moradia.

“Pas, estou no banho.”

O bilhete voltava a se agitar ao vento, num supremo esforço para se arrancar do portão. Fugir para não ser cúmplice daquela estúpida mentira. Rolar leve pela rua, sem rumo, se ferindo nas pedras. Soltar-se ao vento até apagar as palavras nele escritas: “Pas, estou no banho.”

No quarto do sobrado, uma secular solidão. Não era bem uma solidão. Era um impessoal abandono, como se o único habitante daquele lugar, por medo de uma peste ou de uma invasão de ratos, o tivesse abandonado sem tempo de levar nada. A cama feita e lisa. Os livros e discos empilhados numa estante improvisada. O guarda-roupa fechado, sepultura para as poucas roupas que não eram usadas. Uma mesinha — se via que tinha servido para tudo —, era agora uma escrivaninha. O rádio de pilha e a vitrola antiga. As únicas coisas vivas eram a poeira constantemente renovada pelas demolições e construções em frente ao sobrado, e o som oco e grave dos ratos roendo o assoalho depois de subirem do porão para se apossarem daquele ambiente.

O quarto ligava-se a uma sala vazia de onde uma escada de madeira, em curva, levava até o banheiro. Ele acendeu o aquecedor que, após uma pequena e abafada explosão, soltou suas labaredas para aquecer a água do chuveiro. As gotas correram a deslizar sobre seu corpo de pele transparente. Começava a se preparar cuidadosamente para esperar por Pas. A água do chuveiro caía forte e quente formando vapores de fumaça, deixando tudo opaco.

Pas... ele não gostava de seu nome e só se apresentava assim, com a palavra formada pelas iniciais do nome e sobrenome ao contrário. Ninguém sabia seu real nome, só os professores — que ele também exigiu que o chamassem de Pas —, e eu.

Pas deve chegar hoje de Londres... Não, de Paris... Nem me lembro mais. Acho que é de Londres mesmo, onde fez o curso de cinema. Em Paris foi cursar filosofia... Puxa, como passou depressa!... Quando você disse que ia embora, afirmei, numa mistura de raiva e alegria, que era um louco de sair assim, sem dinheiro, sem saber direito o que ia fazer lá fora. Mas a surpresa do desconhecido o excitava, da mesma maneira que o novo me assusta e me amedronta até hoje... No fundo, o que me movia era uma dolorosa inveja de tudo aquilo que você fazia. Com seus múltiplos sorrisos e seu olhar cínico, desmontava todos os anos de magistério dos professores do colégio. Diante de suas respostas eles ficavam paralisados como se, após terem perseguido você numa longa corrida, parassem diante de um abismo que só você tinha conseguido saltar num voo leve. E eles sentiam seu olhar do outro lado provocando:“venham, pulem também”. Os alunos vibravam invejosos de sua coragem. Janelas, portas, giz, quadro-negro e corações estancavam-se e, sem respirar, esperávamos os resultados: Aluno indisciplinado, mas brilhante! Você displicentemente rasgava esse veredicto com sua voz, afirmando para toda a sala de aula ouvir, que ninguém iria domesticá-lo, embalsamá-lo:

− Eu não vou aceitar docemente este ensino sem vigor, sem paixão. Vocês ensinam a cegueira. Pior, vocês colocam uma viseira de burro para que enxerguemos o que vocês querem que vejamos. Não querem que a gente veja nada ao nosso redor, ou mais longe, nem que pensemos por conta própria. Mas eu não aceito esta viseira. Meus olhos enxergam 360º à minha volta. Não vou me deixar manipular, como vocês têm feito anos e anos com seus alunos. Sou um dionisíaco e não vou me dobrar às suas baboseiras.

Eu voltava para casa com uma insuportável tensão na nuca e nos ombros.

 

O vapor do chuveiro envolveu o banheiro numa bruma pegajosa, uma névoa leitosa que encobriu seu corpo, onde os ossos pareciam perfurar a pele. Gotas começaram a desfigurar o desenho do azulejo e o reflexo do pequeno espelho do armário. Lá embaixo, os ratos, como uma furadeira, roíam as velhas tábuas do assoalho, onde o focinho de um deles começou a aparecer.

 

Ah, como queria ser igual a Pas, ou melhor, como eu gostaria que Pas não existisse só para eu não querer ser igual a ele... Você era meu total desequilíbrio. Dentro do meu medo, criei medidas, com mecanismos regulares de controle, para conviver com você. O mundo deveria ser como eu imaginava e tentava vivê-lo. Mas, de repente, sem nenhuma lógica, você rompia com tudo... Eu rezava para que você não fosse às aulas, assim, eu poderia brilhar. Nós dois éramos os melhores alunos, mas meu brilho estava contido no quadrado médio de uma placa de cristal. O seu, não. Era uma enorme parede de cristal que, a cada gesto seu, ia se quebrando pouco a pouco, numa sala sem muita luz, provocando diferentes e infinitos brilhos, cada um mais intenso que o outro... Quando você faltava à escola, as aulas tinham seu tempo exato de duração...

A professora de inglês... Ela amava você com um ódio tão intenso! Antes de entrar na sala de aula — eu já havia reparado —, ela ficava no corredor, ofegante, ansiosa para ver você, o único que ela cumprimentava pessoalmente, na expectativa angustiosa do que você iria aprontar com ela. Lembra-se, Pas? Ela era gorda, sempre com laçarotes coloridos na cabeça e, no pulso, uma indefectível bolsinha, que ficava menor ainda naquele braço rechonchudo... Lembra-se do aniversário dela, quando você lhe deu uma bolsa feita com uma minúscula cesta de ovos, presa com duas tiras de pano imitando alças?...

No início do curso, você foi a primeira pessoa que falou comigo e nunca mais nos separamos. Sua presença me incomodava, mas eu não podia viver sem ela. Você alimentava a minha inveja, meu único desequilíbrio... E eu para você? Talvez quisesse que eu atingisse o seu desequilíbrio, a única maneira digna de suportar a vida... Quando fomos pegos fumando no intervalo das aulas, imediatamente joguei o cigarro fora. Você não. Encaminhou-se calmamente para a diretoria e lá continuou fumando.

− Já fomos pegos na infração, não fomos? O castigo vem mesmo, não vem? Então, deixa eu aproveitar o cigarro até o fim.

Quando o curso colegial terminou, eu não sabia o que fazer. Queria que você dissesse quais eram suas pretensões para depois eu revelar, com fingida surpresa: “Puxa, que coincidência! Também vou fazer a mesma coisa!” Mas você veio com curso de Cinema, Pas! Cinema? Com que dinheiro? Viver de cinema? Isso é loucura!... Depois aconteceu aquela passeata contra os militares, que eu fiquei observando da calçada, me escondendo entre as pessoas, até ver você ser preso. A princípio feliz por imaginar que você poderia não sair vivo dessa, mas, ao mesmo tempo, outra parte do meu cérebro mostrou você sendo mais glorificado ainda. Covardemente, voltei para casa como se eu não tivesse nada a ver com aquela pessoa que a força militar levava para a prisão...

...a Europa. Como gostei dessa sua resolução. Ajudei-o em tudo, com muita pressa, mas sem nenhuma cooperação. Queria vê-lo o mais longe possível de mim. Poderia, então, existir por mim mesmo. Minha existência independente da existência de Pas... Enquanto você ficasse fora, eu ia ser único, equilibradamente único... Ah, como eu queria que você morresse por lá; ninguém descobriria nos meus olhos esse crime...

...quatro anos e agora você volta... Antes não tivesse deixado o bilhete no portão. Bastava não atender à porta, assim você pensaria que eu havia mudado de casa — o que seria uma surpresa para você — e nosso encontro ficaria adiado por mais um tempo... Com você volta toda a minha instabilidade, a minha ânsia covarde pelo desequilíbrio da vida... Ah, como eu gostaria que você voltasse fracassado para eu poder dizer, com saborosa superioridade: “Tá vendo? Por que não fez como eu?”... Mas continuo naquele limbo onde sempre estive, entre a imensa tristeza e a irresolução, e a felicidade e o sucesso total. Quero tanto passar para um dos lados definitivamente, para apagar você de minha sombra... Definir minha vida ou minha morte... Acho que nunca existi por mim mesmo, só nas sombras dos outros, na sua sombra Pás...”

O chuveiro a gás foi bruscamente fechado. O farfalhar da toalha esfregada no corpo fez um contraponto à sonoridade ritmada da água escorrendo pelo ralo. Ele passou a toalha no espelho embaçado, que foi tomado pelo seu rosto, os ossos maxilares quase furando a pele. O azul cristalino da íris de seus olhos disputava espaço com a vermelhidão à sua volta, provocada pelo xampu. Olhou a tatuagem de três letras no seu pulso direito. Mostrou-a ao espelho que refletiu o contrário, revelando as iniciais de seu nome: Sergio Albino Pereira.

Era noite já, e as demolições das casas tinham sido interrompidas para serem retomadas no dia seguinte. No quarto, o focinho de um rato insinuou-se pelo buraco que tinha acabado de fazer no assoalho. Olhou precavido, movendo os olhos a fim de sondar o novo ambiente, sem saber de imediato qual direção tomar. Em breve ele e sua tribo se apossariam do território.

Auxiliado pelo vento, agora mais forte, o bilhete tinha conseguido se desprender do portão de ferro e voava sem rumo. Balançava feito um sorriso sem rosto, que logo se transformaria numa risada infantil.

Um cheiro de gás vagueava por toda a pequena ladeira de paralelepípedos. Alguém, enfim, não se esquecera de se matar.

 

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