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		Dos dias e noites em que delirei por febre de quarenta graus, por 
		complicações de um sarampo que quase me levou (aviso aos negacionistas 
		das vacinas: sarampo mata sim), não tenho lembranças. Contaram-me depois 
		que Papi Pujol dormiu lá todas as noites, numa UTI improvisada. O que 
		recordo, na fase de recuperação, são das maçãs raspadas em colheradas em 
		minha boca, dos sucos de laranjas e limonadas, e do meu riso ao ouvir 
		minha mãe cantar, ainda mais desafinada do que o habitual, só para 
		ver-me rir em minha profunda prostração. O riso salva e ela bem o sabia.
		 
		 
		Minha casa sempre foi muito musical. Ouvíamos muito música, e havia 
		muitos discos de 78 rpm comprados na RCA Vitor na Rua da Praia. Ainda 
		lembro do selo com o cachorro. Eram ecléticos lá em casa. De sambas 
		canções nas potentes vozes de Chico Alves, João Dias, Carlos Galhardo, 
		Silvio Caldas, Dalva de Oliveira, Araci de Almeida, às célebres 
		marchinhas, aos discos lindos de Dorival Caymmi, juntavam-se outros de 
		ritmos tão diversos como boleros e tangos ( uma paixão) e músicas 
		italianas com ênfase nas cantadas pelo célebre Caruso e espanholas na 
		voz de Sarita Montiel e outras cujos nomes já esqueci.  
		  
		E o 
		rádio só descansava depois do almoço, pelo espaço da tarde e era 
		religado pontualmente às 19 horas para a audição do Reporte Esso. O 
		noticiário criado antes de eu haver nascido, nos tempos do Getúlio, 
		começou como um noticiário da Segunda Guerra em 41 e durou até 1970. 
		Dele lembro da música e da voz do Heron Domingues. Creio que deve ter 
		sido o primeiro instrumento de difusão ideológica americana por aqui. 
		Não vem ao caso, agora.  
		 
		Nas noites frias, deixavam-me ficar na cama com eles, ouvindo a Rádio 
		Nacional, cômicos como O Balança mas não cai, programas do Ari Barroso, 
		muita música, lançamento de estrelas promissoras como a maravilhosa 
		Dolores Duran, entre tantas. Dolores, cardiopata grave desde a Febre 
		Reumática que tivera aos oito anos, tornou-se, em seus últimos anos da 
		vida breve, invulgar compositora com parceiros como Antônio Maria, João 
		Donato, Billy Blanco e Tom Jobim. Falecida 5 dias após o nascimento de 
		meu irmão em outubro de 59, havia lançado há pouco A noite de meu bem 
		que embalou nossas férias de verão em Tramandaí no som rouco dos 
		alto-falantes instalados na praia. Lembro muito de meu irmão agitando as 
		perninhas, alegremente, quando a ouvia. Era ótimo. Quando chorava, a 
		gente cantava e ele parava quase na hora. Como esquecer? 
		 
		Quando ganhei, em um Natal, um rádio moderno, de baquelite vermelho, foi 
		a minha festa. Este presente e o Tesouro da Juventude, foram 
		inesquecíveis. Passei a estudar ao som das rádios. Depois entrou a FM e 
		guardo boas recordações da Rádio Guaíba FM e da Rádio Universidade FM. 
		Um outro padrão e só tocava música de qualidade. Com elas passei a ouvir 
		a incipiente bossa nova, muito rock que adorava, descobri o jazz, as 
		canções americanas, músicas clássicas e seus autores até então quase 
		desconhecidos aos meus ouvidos.  
		  
		Um 
		universo se expandia. Ainda lembro da emoção de ouvir pela primeira vez, 
		na voz de Ray Charles a canção Stella by starlight e da minha ânsia de 
		escrever a letra num inglês como ouvia e que depois tinha que ser 
		corrigido. Ajudou em meu aprendizado da língua, ainda não dominante e 
		global. Por aqueles tempos, o francês era, ainda, a língua culta que 
		resistia bravamente nas escolas e academias. E quem não ouvia Edith 
		Piaff, Ives Montand, Jacques Brel e Et Maintenant com Gilbert Becaud? 
		Vou além com o Charles Trenet e suas chansons cantadas numa voz macia 
		bem ao meu gosto. Como esquecer a sua importância em composições como 
		Que reste-t-il de nos amours, ou Douce France, transformada em hino da 
		resistência francesa nos anos de 43 do século passado e até hoje 
		regravadas? Ou de Henri Salvador que morou no Copacabana Palace nos anos 
		50 e foi por alguns considerado um precursor da bossa nova? 
		 
		Em meu pequeno grupo de amigos de infância, gostávamos de cantar todas 
		de Cely Campelo a Elvis Presley, sambas tradicionais e as músicas com 
		letras quase infantis como o Trevo de quatro folhas, O Pato, e Lobo bobo 
		da qual, por ausência de malícia, não compreendíamos o sentido do jantar 
		o chapeuzinho vermelho. Sempre com qualquer coisa na mão à guisa de 
		microfone. Também dançávamos muito, especialmente rock, e eu, pequena e 
		leve, era atirada pra cima, para os lados e passava entre as pernas do 
		amigo Pupi, mais velho e forte, imitando o que víamos no cinema e na 
		recente TV em preto e branco que, por fim, chegara ao RS e, 
		vagarosamente, foi relegando o rádio ao exílio. Mas o meu baquelite 
		resistia, sempre ligado, até a chegada dos primeiros rádios de pilha. 
		Meu pai apaixonou-se por eles, por seus fones de ouvido, quando podia 
		adormecer com música sem incomodar minha mãe. Teve muitos, e creio que 
		até os anos noventa, havia um de capa azul calcinha em sua mesa de 
		cabeceira.  
		  
		A TV 
		mudou a vida das famílias para sempre, porém de início serviu para 
		acolher e estreitar laços com os vizinhos que ainda não a tinham. Lembro 
		dos musicais e das apresentações das divas Maísa, Elizete Cardoso e 
		muitas mais em trajes de gala; os tempos áureos da TV como a elite das 
		comunicações destinada a uma classe média em ascensão, quando a bolsa 
		devia combinar com o sapato!  
  
		Também 
		nos anos sessenta surgiram, para ficar em nossas vidas, muitos 
		britânicos, em particular, Os Beatles com suas letras muitas vezes 
		ingênuas, mas com um som fantástico. Em 60, perdemos minha avó paterna e 
		foi doloroso demais, até pela subitaneidade da sua morte. Entretanto, a 
		perda afetiva em família, em setembro de 66, foi melancolicamente 
		marcada por Yesterday, tocada incessantemente nas rádios. Esta perda foi 
		determinante em minhas escolhas futuras, até no jeito de entender e 
		exercer minha profissão.  
		 
		E foram tantos, mas tantos os grandes compositores e cantores ( os 
		cantautores) que se sucederam desde então que minhas memórias, por vezes 
		fotográficas, remetem-me a uma certa época ou a um momento muito 
		particular ligados, indelevelmente, a uma música. Minha trilha musical 
		de um filme em 3D, um longa metragem onde sou atriz, escritora e 
		diretora, reescrito no dia a dia com preciosos coadjuvantes, 
		protelando-lhe a estreia antes que coincida com sua inevitável última 
		sessão.  
  
		Por isso 
		eu quero cantar com meu fio de voz. E dançar, sempre que posso, ainda 
		que só ou involuntariamente como hoje me aconteceu. Lavar a louça, com 
		fones de ouvido e sambar ao som de Xandy canta Caetano. Uma boa 
		ginástica para não adeptos de academias onde som e ritmo são meros 
		ruídos aos meus pobres ouvidos, já meio gastos pelo tempo.  
		 
		Um bom resto de dia aos amigos e companheiros de jornada e da música 
		atemporal. Esta permanecerá. 
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