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(Felix Joseph Barrias, 1860, A Tentação de Cristo)

 

Um domingo de Aleluia tudo mudou em minha vida.

 

 

Tentações

do Demônio

 por Stela Maris Grespan
 


Impossível resistir às recordações de um tempo meu, hoje passado pretérito simples.

Foi um tempo de grande medo em criança. Temia a morte, tão logo a descobri, e, mais que tudo, temia as tentações dos demônios ( parece que havia um e seus heterônimos!) e o fogo do inferno. Assim era ensinada nas aulas de catecismo que o governo laico nos empurrava goela a baixo.

 

Tão logo fiz a comunhão, já sofria com a confissão e suas penas. Respondia para minha mãe incontáveis vezes ao dia, um que outro palavrão, tudo simples e até meigo como um merda ou bosta, mentirinhas para fugir da escola antes do horário e brincar solta pelas ruas seguras e árvores não tanto. Quantos padre-nossos e ave-marias tive que orar em penitência. Confesso hoje que ao contar, pulava algumas, de 10 viravam 8, que fazer, com novos pecadilhos de auto engano.

 

Gostava até um pouco de ir à missa, embora não entendesse bem os sermões que era a hora certa de eu fugir em pensamento para outros lugares ou preparar minha defesa, junto ao confessionário, aos moldes dos que hoje se defendem nas mídias, quando convidados a confessar seus delitos e infâmias. Lá ia eu com pernas trêmulas e discurso pronto. Mas, a justiça era feita e havia sempre a punição, não adiantava em nada se eu colocasse a culpa em meus amigos, em minha mãe, ou no meu espírito livre.
 

Isto durou uns três anos.

Um domingo de Aleluia tudo mudou em minha vida.

 

Estava eu, bonitinha em meu vestido azul de organdi suíço e manguinhas curtas e bufantes, véu sobre a cabecinha contrita e baixa, ante o mistério da transubstanciação, motivo da celebração de Corpus Christi, quando sou desperta pelo cutucar de uma varinha. Abro os olhos que fechara, em respeito e em busca da fé na eucaristia, e vejo o padre que recolhia os óbolos em um saquinho de veludo grená, a chamar minha atenção. Fiz- lhe sinal com a cabeça que não tinha dinheiro, mas ele insistiu e acenou-me com a mão. Levantei-me, perturbando a fé dos adultos que me separavam do corredor da igreja, e fui até ele. Sem ter-me um mínimo de respeito, expulsou-me do recinto, pelo supremo pecado das manguinhas bufantes e os braços infantis à mostra.

 

Foi muita injustiça e a maior humilhação. Nenhum advogado de defesa entre os cristãos que a tudo assistiram. Desde sempre, omissos. E não será a omissão um pecado dos grandes? Daqueles confessáveis ou inconfessáveis? Foi minha primeira aula sobre hipocrisia. Deixa pra lá, que eu vou desviando e encompridando a memória. Chorei três quarteirões, não sei se solucei.


Minha mãe na cozinha a preparar o almoço de domingo. Talvez tenha sido um marreco com repolho roxo que aprendera com os alemães de Santa Catarina, e que sempre apreciamos. Hoje não mais! Meu pai, na sala, lendo escondido pelas páginas abertas do Correio do Povo, veio logo em meu socorro, tão logo ouviu meu choro. Que foi filhinha? Sempre me chamou assim, até sua morte. E eu contei- lhes, pois minha mãe abandonara as panelas e segurava o avental em dobras, como a esconder- lhe os respingos. Minha mãe deve ter dito- Não ligue minha filha, mas que bosta! Adorava dizer bosta e eu sentia o seu prazer ao dizer, enchendo a boca.
 

Meu pai ouviu tudo em silêncio, antes de explicar-me tantas coisas importantes e começar a dar-me as primeiras lições sobre religião: da existência ou não de Deus, da falibilidade dos padres, de tabus e repressão sexual que eu não compreendia direito (só muitos anos depois), que eu não era pecadora e não havia inferno para além da terra, muito menos demônios, exceto os homens maus, e assim por diante.

 

A Igreja me perdeu ali,no momento exato em que a ignorância ou a pedofilia enrustida de um servidor dela expulsou-me do paraíso. Eu ganhei um pai mais amigo, orientador e companheiro até o fim dos meus dias.

E o pão se fez mais pão a ser repartido e o vinho mais sangue da inocência perdida.
 

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Venicio Di Gregorio Uma pena ter sido assim, uma total falta de respeito e de amor com uma pequena criança, mas com certeza a fez ver as coisas de uma outra maneira.

Regina Scaf Silveira Que história bem contada Stelinha
Stela Maris Grespan Regina Scaf Silveira Obrigada, Regina. Saudades!

Rosana Viotto Stela Maris eu fiz o catecismo me lembro que no dia para se confessar ao padre eu achava que tinha tanto pecado que Deus não me perdoaria, fugi!
Mas não escapei no dia do catecismo o padre foi a procura da menina que tinha fugido por pavor de Deus nunca me perdoar! É tu escreve maravilhosamente bem!
Stela Maris Grespan Rosana Viotto Obrigada, amiga. Bom partilhar destas experiências. É saudável. Bj

Isabel Fomm de Vasconcellos Eu também fui expulsa da igreja do Brooklin aos 10 anos de idade porque estava usando um vestido decotado, sem mangas, decorado com fitas azuis, igualzinho ao da Brigitte Bardot. Nunca mais pisei lá.No ginásio, fui da JEC até um dos padres (de esquerda e bem modernoso) dizer que nós não podíamos aderir à moda de Mary Quant e usar minissaias. Mandei todos à merda e saí da JEC. De minissaia, é claro.
Stela Maris Grespan Isabel Fomm de Vasconcellos Então. Eu também no ginásio tentei entrar na JEC, muito politizada, mas não aguentei o tranco da catequese e de algumas colegas muito carolas. Detesto dogmas e sistemas fechados. E viva a minissaia! Embolávamos as saias compridas todas na cintura.

 

Stela Maris Grespan
Em tempos de hipocrisia generalizada, de omissões, coligações espúrias e o mal estar do satanismo de governantes no inferno que o Brasil se transformou, foi ótimo reler minhas singelas memórias. Embora tenha sido doloroso experimentar da maçã, foi fundamental minha expulsão do paraíso! Obrigada, Isabel!