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Revista UpPharma Julho 2022

O Saudável Sonho de Mariana

(Para Roseli Zampirolli)

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

 

 

Mariana tinha um sonho. Menina nascida na periferia da grande metrópole, onde todos acreditavam ter seu destino traçado. E esse destino seria o de repetir a história de seus pais, ou seja, trabalhar apenas pela sobrevivência e, no máximo, conseguir uma casinha pra morar, o que já seria uma grande conquista.

Porém, o que Mariana esperava da vida não era bem isso. Ou antes, não era nada disso. Ela queria ser muito mais que o que o seu ambiente esperaria dela. Queria estudar, cursar uma universidade, trabalhar, ser independente. Conhecer o mundo!

 No entanto, os condicionamentos sociais falam mais alto e, quando deu por si, aos 17 anos, estava noiva do namoradinho com quem começara um flerte aos 13. Quando deu por si, estava construindo um “puxadinho” no quintal da casa dos pais, exatamente como estes tinham feito, ao se casarem havia duas décadas, na casa dos avós de Mariana. Quando deu por si, percebeu: Era a inexorável repetição da vida sem surpresas, mas também sem grandes realizações, à qual os mais pobres se condenavam.

Mariana parou para pensar. Sua mãe, suas tias... 4 ou 5 filhos, partos mal assistidos, uma tinha incontinência urinária, outra sofria de endometriose, outra, com ovários policísticos.

“Todas as doenças são psicossomáticas” – lera ela num site na Internet. “Tudo começa no sentimento, na emoção.”

 Sabia que sua tia sonhara, na infância, em ser pianista. Mas como? Até conseguiu estudar um pouco de música num conservatório, com uma bolsa. Mas logo foi trabalhar na grande indústria que dominava o bairro e, pouco tempo depois, viu sua mãe adoecer. Suas outras irmãs já estavam casadas, em casa só ela de mulher, além da mãe agora doente, o pai e o irmão jamais pegaram numa vassoura ou num frasco de lava louça... e não seria agora... Assim, o piano foi devidamente esquecido e sepultado.

Sua outra tia, antes de se casar, fôra Miss. Ganhara o concurso do clube de futebol do bairro e chegou a ficar em segundo lugar no Miss São Paulo. Recebera, então, vários convites: desde para posar para revistas até para ser bailarina, como figurante, num programa de uma pequena TV. “—Escândalo!” – vociferou a família “– Moça direita não vai dançar seminua na televisão!”

Trataram logo de casar a tal candidata a Miss, para que esta se reduzisse ao que, afinal, dela era esperado: mãe, esposa submissa (“muitas vezes, agredida” – pensa Mariana) e dona de casa (“mas não do seu próprio nariz” – concluem os pensamentos de Mariana).

Assim, para escapar da mesmice do destino das mulheres de sua classe social, às vésperas do casório e com a casa (o puxadinho no quintal) quase pronta, Mariana disse – como o Operário Em Construção do Poeta Vinicius de Moraes – não! Não.

 Hoje, duas décadas depois dessa história, Mariana é executiva numa grande empresa internacional. Ganha muito mais do que sua família inteira junta. Não fôra fácil. Mas ela vencera! Estudara, se formara, fora trabalhar para pagar a faculdade pequena da periferia (entrara na USP, mas não pudera cursar: era longe demais de casa e o dinheiro para a condução não existia...), arrumara um bom emprego e, enquanto suas amigas, torravam seus salários em roupas, algum cinema, alguma balada, Mariana vivera como freira.

 Passara anos apenas trabalhando e estudando à noite e ainda, como a filha solteira, ajudando a mãe nas lidas domésticas. Inteligente, logo percebera que a leitura era um dos melhores hábitos que podia cultivar. Fez cursos. Todos os que fossem gratuitos, pela Internet ou presencialmente. Aprendeu, no ciber café do bairro, a dominar os programas de computador. Um dia, pôde comprar um laptop e não parou mais. Depois vieram os celulares.

Tudo, para Mariana, era oportunidade de crescimento, de adquirir conhecimento.

 Seu trabalho atual permitiu-lhe, antes da Pandemia, conhecer inúmeros países. Realizou seu sonho.

 Agora, aos 40 e poucos anos de idade, ela vai sim, uma vez por ano, à sua ginecologista, fazer a sua prevenção de rotina. Mas, nunca, nunca mesmo, teve doença alguma, nem uma simples cólica menstrual. Amor? Tem alguns. Nenhum é dono dela.

 

Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano é escritora e jornalista de rádio e TV, com especialização em saúde. isabel@isabelvasconcellos.com.br