voltar para a página Revistas                                                                                REVISTA UPPHARMA AGOSTO 2018 N.174 ANO 42

(UmBerto Boccioni, 1909, Três Mulheres)

 

 

 

Gerações

por Isabel Fomm de Vasconcellos e

Albertina Duarte Takiuti

 

(do Livro "Para Gostar de Ser Mulher - lançamento: Maio 2019)

 

Capítulo 1 – Gerações – (Prazer e Preconceito)

1. Leonor, a avó

-- Ah, minha querida – dizia Leonor à sua netinha de 17 anos – você não pode imaginar como foi a nossa juventude. Impossível pensar naqueles anos 1960, sem imediatamente pensar na reviravolta instaurada pela revolução sexual. De repente, tudo virou de cabeça para baixo. Os velhos costumes foram remexidos, o recato saiu, de repente, da moda e ...

A moça, que segurava delicadamente a mão de sua avó, sobre a mesa posta para o lanche, sorriu. Quando ela sorri parece que todo o Universo sorri com ela – teve tempo de pensar Leonor, antes que ela, sacudindo a vasta cabeleira negra, passasse do sorriso à gargalhada:
-- Vovó, pelo amor de Deus! O que é re-ca-to?

Leonor teve que rir também.
-- Está vendo? Nem mais a palavra existe, o que dirá da atitude...

-- Recato é uma atitude?

-- Sim, uma mistura de pudor com timidez, uma coisa que era exaustivamente ensinada às mulheres, desde criancinhas. Fazia parte, é claro, do sistema de redução do nosso sexo à sua condição submissa e passiva. Mas como eu estava dizendo, quando saiu de cena o recato, entrou a liberdade como uma bandeira absoluta. Os hippies popularizam seu lema de Paz e Amor, os cabelos compridos representavam uma forma de protesto que quebrava os limites, até então muito rígidos, entre homens e mulheres. Viver o momento, curtir a vida, conquistar o prazer...

-- Bem – ponderou Lilian, a neta – mas hoje também nós jovens queremos viver o momento, curtir a vida e conquistar o prazer.

-- Pois é., mas não quereriam, se a nossa juventude não tivesse inventado esse querer. A herança das grandes inquietações sociais e políticas daquela década de sonhos fez com que nós, mulheres, enterrássemos definitivamente o pudor excessivo e quase doentio que, por tantos séculos, nos afastara de nosso corpo e, então, assuntos como masturbação, posições sexuais, orgasmo, passaram a fazer parte do nosso universo feminino.

-- Não se falava nisso então, antes? Antes da sua juventude, quero dizer.
-- Nem pensar! As mulheres, depois da vitória dos cristãos sobre os povos que eles chamavam de bárbaros, na Baixa Idade Média, reduziu a beleza própria do corpo da mulher a nada mais do que o depósito de pecado. De lá para cá, só restava ao nosso sexo, dois caminhos: ser recata (e aqui, riram as duas) ou ser prostituta. A mãe de família, como se chamavam as recatadas, faziam amor apenas para ter filhos e foram se distanciando cada vez mais da ideia do prazer. O prazer era dos homens. E eles, via de regra, não o encontravam em suas esposas, mas sim nas outras, nas chamadas mulheres da vida.

-- Então...—refletiu Lilian – essas aí tinham prazer?

-- Hum... – respondeu Leonor – nem sempre, na maioria da vezes não tinham não. Era a sua profissão e pronto. O prazer não entrava na conta e os homens jamais se preocuparam em dar prazer às mulheres, às da vida ou às do lar.

-- Ah... agora estou entendendo uma coisa gozada. Eu estava ouvindo os velhos discos de vinil da mamãe e tinha uma música que dizia “mulher é a vida, a vida é mulher, toda mulher é mulher da vida” ... agora caiu a minha ficha! Entendi o sentido do verso.

Leonor estufou o peito. Quer orgulho, aquela neta. Menina inteligente! E disse:
-- Isso mesmo. É uma letra de Fernando Brandt com música de Milton Nascimento.

-- Os do Clube da Esquina – comentou prontamente Lilian.

-- Ué... como você sabe disso?

-- Estudamos, na escola, os movimentos musicais que se ligavam ao protesto político na época da ditadura militar brasileira.

Nesse momento, Beth, a mãe, entrou na sala, carregando a bandeja do café.
-- Pronto. Aqui está –disse Beth – Café à moda da vovó. – E começou a encher as xícaras com aquele líquido super escuro, de aroma forte e delicioso. – Café como no tempo dos Barões do Café! Mas, por falar em tempo, eu estava ouvindo a conversa de vocês. Mamãe – dirigindo-se à Leonor – concordo que a sua juventude deixou um maravilhoso legado para aqueles que sabem distinguir alhos de bugalhos. Mas, por outro lado, os princípios revolucionários dos anos 1960 acabaram gerando alguns modismos perigosos. Do pudor exagerado, fomos parar nessa onda de culto ao corpo, que marcou a década seguinte e se estende até os nossos dias. Tornou-se obrigatório enrijecer músculos, colocar o esqueleto no prumo, eliminar completamente qualquer gordurinha... enfim, a ditadura do Índice de Massa Corpórea. E a tão cantada liberdade sexual aumentou a incidência de doenças sexualmente transmissíveis e, nos anos 1980, com o surgimento do vírus da AIDS, o perigo passou a ser mortal...

-- Imagine, mãe! – interrompeu Lilian – Ninguém mais morre de AIDS hoje em dia.

-- Você é que pensa, minha filha. AIDS pode ser morte em vida. Obriga o infectado a uma vida cheia de limitações e de remédios. Não é fácil, não.

-- A minha geração – protestou Lilian, engolindo um biscoito que ela enchera de Nutella – está mais pra média de tudo isso. No meu colégio mesmo tem um grupo de meninas que são chamadas de feministas radicais. Elas não querem nem saber se são gordas ou magras. Elas querem ter saúde e ser felizes. Isso não passa por se matar em dietas ou arrebentar os tendões numa malhação neurótica.

-- Sim – disse Leonor – Creio que a sua geração procura uma conscientização plena de ser mulher. Ter saúde e sintonia entre a cabeça, o coração e o sexo. Depois de milênios de repressão sexual está sendo difícil para as mulheres, aquelas cujas antepassadas faziam amor no escuro e de camisola, morrendo de vergonha de seu próprio corpo, perceber que gostar do próprio corpo é algo mais complexo do que simplesmente torna-lo bonito por fora.

-- Assisti a uma palestra – disse Beth – no meu grupo de ioga, de um médico espetacular. Foi o criador do primeiro ambulatório de sexualidade num hospital público brasileiro. Ele diz que, para entender o mecanismo dessa prazer que por tanto tempo foi negado ao nosso sexo, é preciso antes conhecer o caminho que nós, mulheres, percorremos na elaboração da nossa sexualidade. Tem quem pense que a sexualidade só aparece na adolescência, mas ela está conosco desde a primeira infância e tem quem vá mais longe e diga que ela está conosco já na vida intrauterina. Mas o que ele colocava é que a atitude dos pais é fundamental no desenvolvimento da sexualidade; não só o modo como pai e mãe se relacionam em termos afetivos e o jeito com que eles lidam com o corpo dos filhos, desde recém-nascidos, são decisivos.

Aquela fala de sua mãe, fez com que Lilian se lembrasse do que lera num blog de uma amiga. Era a reprodução de uma outra fala, de uma médica muito conhecida e badalada na mídia. Imediatamente, sacou seu celular e foi procurar a informação.

-- Sempre com a cara metida nesse telefone!! – protestou Beth. – Nada contra a informática, tudo a favor, mas tudo contra o fanatismo e o vício!

-- Mãe, vê se não enche. Estou procurando justamente um texto pra complementar o que você estava dizendo. Achei... olha só! E começou a ler:

“Começamos a despertar para o nosso corpo muito cedo. Já no tempo das fraldas, tateamos os órgãos genitais para conhece-los. Depois, entre os 4 e 5 anos, vem a fase das brincadeiras de médico, nada mais do que uma forma de nos enxergarmos no outro. Tais atitudes são parte do desenvolvimento sadio da criança. Antes do 7 anos já está formada a nossa identidade sexual. Sempre sob intensa influência dos pais. A menina tenta imitar a mãe, mas a presença de uma figura masculina é muito importante para que, quando adulta, possa ter um bom relacionamento afetivo com seu parceiro, ou parceira. Dos 7 aos 9 anos aparecem os caracteres sexuais secundários. Na menina, modelam-se as curvas, a cintura fina, os quadris arredondam por deposição de gordura. A bacia se alarga tanto quanto os ombros, as coxas ficam roliças, as mamas crescem, surgem os pelos nas axilas e, depois, recobrem a vulva. Entre os 10 e os 12 anos aparece a primeira menstruação. Estamos virando mocinhas e isso pode assustar...”
-- Bem, vovó – arrematou Lilian ao terminar a leitura – isso não mudou nunca, né? Nem na Idade Média, com a vitória dos cristãos sobre os bárbaros, nem nos anos 1960, com a tal da revolução de costumes, né?

Leonor riu:
-- Não. O físico é o físico. Mas o que muda é a maneira como se encara o físico, como a sociedade e a cultura veem esse desenvolvimento natural. Quando os cristãos (e outras religiões também, é bom que se diga) inventaram o pecado e esse pecado estava depositado no corpo da mulher, todo esse desenvolvimento sexual precisava ser escondido, abafado, ignorado. Ao descobrir a excitação, o prazer do toque em seu próprio corpo, as meninas eram levadas a pensar que aquilo era coisa do demônio, que deveriam lutar contra aquilo. Essa é a diferença.