voltar para a página-site  Revistas ou voltar para a página principal

 

Doentes Mentais -

 

Revista UpPharma - 2016. 02

por Isabel Fomm de Vasconcellos

 

Meus dois irmãos tinham doença mental.

Oh, que horror!

Horror nada. 

Muito mais gente do que você pensa tem doença mental.

Gente que está ao seu lado, que trabalha ao seu lado, que anda no metrô, no trânsito, no avião, no navio, na vida, ao seu lado. Um time de doentes navegando na Internet. Um time de doentes sofrendo sem saber como ou porque.

Gente que dança com você na balada. Gente que atende você na loja do Shopping, no restaurante. Gente que mora na sua própria casa. Gente que vive deprimida. Ou mal humorada. Gente que humilha os mais fracos, bate em mulher, abandona criança. Gente que abusa sexualmente, que estupra. Gente que tortura. Gente que chora. Gente que sofre e faz sofrer.

 

Escrevo isso numa pálida e, sei, quase infrutífera, tentativa de desmitificar a doença mental.

Os médicos psiquiatras sabem que a doença mental, na maioria das vezes, nada mais é do que o que eles chamam de “transtorno afetivo”. Tenho um amigo psiquiatra, Dr. Wimer Bottura Jr., que gostaria de trocar o termo “doença mental” por “doença neuroquímica cerebral”.

Explico, de maneira tosca, leiga: as nossas emoções não passam de química. Tudo é química. No nosso cérebro, circulam os tais dos neurotransmissores e, quando alguma coisa interfere com a transmissão normal dessas substâncias, se instala o tal do “transtorno afetivo”. É claro que aqui se trombam o psicológico e o físico. Numa simbiose do tipo “quem-nasceu-primeiro-o-ovo-ou-a-galinha”. Por exemplo, quem tem uma tendência genética à depressão, pode desencadear a doença depressão quando viver alguma coisa extremamente triste. Ou seja, se morre alguém que você ama, você vai ficar deprimido. Se perde o seu emprego, também.  Por um período que os psiquiatras consideram dentro da normalidade e chamam de “período de luto”. Mas se esse “período” se estender pro resto da vida, começar a atrapalhar o seu cotidiano, as suas atividades... Então você desenvolveu, por exemplo, a doença depressão.

Nada é simples. Não existe só depressão. Existe Fobia Social. Estresse Pós Traumático. Alcoolismo. Dependência Química. Compulsão sexual. Bulimia. Anorexia. Síndrome do Pânico. Transtorno Dismórfico. Compulsão alimentar.  Existe transtorno bipolar (que antes tinha o nome – na minha opinião, bem melhor – de psicose maníaco-depressiva) e mil outros.

Mas, graças a Deus e aos cientistas, hoje dispomos de medicamentos e terapias que tratam e controlam essas porcarias. Controlam até a paixão, quando essa se torna destrutiva...

 

Começamos, portanto, a compreender que “doença mental” é um termo genérico demais, que na maioria absoluta das vezes não é sinônimo de “perda da razão” e nem de descontrole dos próprios atos.

Um dos meus irmãos, o mais velho, tinha doença mental no seu pior sentido. Aos cinco anos de idade ele teve uma febre brava – uma encefalite, diziam os médicos da época, e veja que isso foi em 1939! – que destruiu um pedaço do cérebro dele. Então, ele perdeu parte da razão, mas apenas parte. Esse meu irmão, que passou muito da vida internado em clínicas particulares, não era exatamente senhor dos seus atos, nunca conseguiu aprender a ler, mas era um homem extremamente educado, refinado, sofisticado. Além de muito bonito. Falava homéricas besteiras, num português impecável! Nas clínicas por onde ele passou, muitas vezes, perguntavam aos meus pais se “ele era doutor”.

O meu outro irmão era brutalmente inteligente -- nunca ninguém, nem de longe, poderia tê-lo classificado como “doente mental” – mas ele sofria da doença depressão.

E essa depressão o fez tomar decisões erradas, o prejudicou profissional e afetivamente. E, por fim, o matou.

Estamos na segunda década dos anos 2000. Avançamos loucamente na informática. Na genética. Paramos de fumar. É hora de parar de poluir. De lutar pelo sustentável. Entendemos que é preciso praticar esportes, alimentação sadia e o que se segue.

Está na hora, agora, de enfrentarmos nosso preconceitos. Está na hora de compreendermos que eles – os preconceitos, que segregam, condenam, cometendo as piores injustiças – são os únicos responsáveis pela intolerância, pela guerra, pela infelicidade e, hoje, pela falta de saúde mental.

 

É hora de lutar pela saúde mental, pela saúde sexual, pela saúde social, para que o mundo pare de produzir doentes mentais.

É hora de abrir a cabeça e fitar o horizonte.

Num futuro próximo, casos como o do meu irmão mais velho serão resolvidos pelas células tronco e casos como o do meu outro irmão já são, desde a década de 1990, controlados por medicamentos antidepressivos, além das psicoterapias.

E eis que nós – ah... o ser humano! – desenvolvemos preconceito também contra os medicamentos psiquiátricos.

Muita gente, mas muita gente mesmo, deixaria de ser infeliz, deixaria de ser problemático, deixaria de ser antissocial, se tivesse a mais mínima coragem de procurar um médico, se não tivesse também – outra vez! – preconceitos contra os médicos psiquiatras, suas terapias e seus medicamentos.

 

Isabel Fomm de Vasconcellos é escritora e jornalista com especialização em saúde. saudelivros@isabelvasconcellos.com.br

Comente (seu comentário será publicado aqui, a menos que vc diga que não que a publicação)

 

Stela Maris

Oi Isabel. Já li seu artigo e gostei bastante. Falaste simples, despretensiosa e deste um excelente recado. Parabéns. Bj

 

Vera Krausz

Muito bom Isabel... Dismistificar a doença mental do outro. E poder encarar as nossas! Parabéns !