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Pequenas Diferenças

por Isabel Fomm de Vasconcellos

 

 

1. Iolanda

Iolanda trabalha como manicure num pequeno salão de beleza. Ganha sobre cada trabalho que faz. Há dias em que entram poucas clientes no salão e, por isso, Iolanda ainda atende a domicílio a algumas mulheres e homens que têm dinheiro suficiente para pagar por este luxo.

Iolanda perde, diariamente, para percorrer a distância que separa sua casa do trabalho, uma média de quatro horas. O trânsito é que causa essa demora, porque são apenas 10 km de trajeto. Em meses de maior faturamento, ela se dá o direito a fazer parte do caminho usando o metrô, mas, na maioria das vezes, vai de ônibus mesmo.

 

Trabalha de segunda a sábado e seus domingos são dedicados a botar ordem na casa, coisa que ela não tem tempo de fazer durante a semana. Domingo de manhã, é sagrado, levanta cedo para ir ao culto na Igreja Evangélica, onde agradece a Deus por ter trabalho, por ter marido e por seus filhos estarem bem encaminhados na vida. Depois do culto, vai correndo para casa, tira a roupa bonita e veste a de briga porque é preciso faxinar a casa, os banheiros, a cozinha; é preciso lavar a roupa da semana toda e ela faz isso ao estilo antigo, no tanque, porque só dispõe de uma centrífuga, as máquinas de lavar são muito caras. Ela agradece a Deus pela centrífuga que, principalmente nos dias úmidos, faz com que a roupa seque mais depressa e algumas peças secam até o fim do dia, permitindo com que ela as passe no domingo à noite e assim não acumula trabalho de passar para as noites, para o próximo domingo.

 

Segunda feira sempre acorda cansada. Prepara o café para o marido e os dois filhos que sairão para o trabalho, separa alguma coisa que sobrou do jantar para colocar nas vasilhas que leva para o salão (e agradece a Deus porque lá, no salão, tem forno de micro-ondas, onde ela esquenta seu modesto almoço) engole alguma coisa e sai correndo para não perder o ônibus das sete. Às nove está no salão e aguenta as fúteis conversas de suas clientes o dia inteiro. Quando não tem clientes avulsos vai direto para casa, onde chega às oito da noite. Mas, se tem clientes, chega perto das dez e aí, encontra os machos da casa já impacientes, loucos pelo jantar.

Joga sua bolsa e sua frasqueira (que pesa toneladas, com todos aqueles instrumentos e vidros de esmalte) em qualquer lugar, coloca um avental, lava as verduras, o arroz, coloca o tempero na panela, frita o arroz, põe para cozinhar. Tira da geladeira o feijão (que ela prepara aos domingos) e põe para esquentar. Retira a carne da geladeira, tempera, põe na frigideira. Lava e descasca as batatas e joga-as na panela para cozinhar. Uma hora depois, está tudo pronto. Ela põe a mesa, lava as panelas e serve o jantar. A família devora. E ela tira mesa, vai para a pia, lava a louça, seca, guarda. E se senta na frente da TV, com o marido, para se distrair um pouco. Mas, invariavelmente, cochila. E, na cama, ele ainda quer fazer amor. Ela está morta de cansaço, mas faz.

 

Iolanda está sob acompanhamento médico. Tem um mioma e também sofre de fibromialgia, uma doença estranha e moderna que a castiga com dores impensáveis.

 

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2. Clélia

 

Clélia é secretária de uma multinacional. Sonha com uma promoção como assistente do departamento de marketing. Terminou recentemente seu curso de pós-graduação na área está livre dos bancos escolares, que frequentava depois do seu expediente de trabalho. Tem 32 anos e não pensa em ter filhos antes de, ela e o marido, acabarem de pagar o apartamento. Ou antes da promoção.

 

Clélia levanta, nos dias de semana, às sete horas. Recolhe, no cesto do banheiro a roupa de ontem e joga-a na máquina de lavar. Faz o café para ela e o marido. Frutas compradas já cortadas e limpas, acondicionadas em potes plásticos, suco de frutas de caixinha, café solúvel, a água ela esquenta em um minuto em seu micro-ondas. Tomam o café na cama, assistindo os jornais matutinos na TV. Enquanto o marido se barbeia e toma banho, Clélia coloca a louça do café na máquina de lavar louça e faz a cama. Às vezes, quando é preciso, passa um espanador magnético nos móveis para tirar o pó. O marido sai. Ela toma banho e, antes de se produzir para o dia, pendura a roupa lavada. Quase nada precisa ser passado, e o que precisa será passado pela faxineira, que vem às quintas feiras. Lá pelas oito e pouco, entra no seu carro, com ar condicionado, e chega pontualmente ao escritório às nove. Ao meio dia, almoça no restaurante da fábrica, comida balanceada e com calorias contadas, o que lhe permite manter a dieta. Saí as cinco e dirige até uma academia próxima. Faz ginástica até às seis e meia e volta para a casa. Às sete e meia, põe a mesa, retira a comida congelada e põe no micro-ondas. Numa vasilha, coloca a salada, já lavada e embalada à vácuo. Depois prepara o arroz, na própria vasilha em que irá para a mesa, no micro-ondas. O marido chega, ele também vindo da academia. Ela abre uma garrafa de vinho e serve o jantar. Depois, assistem um pouco de TV a cabo e vão para a cama, onde, quase todos os dias fazem amor.

Nos fins de semana, geralmente, o casal viaja. Quando não viaja vai ao cinema, ao teatro, frequenta os bons restaurantes. Há muito não precisa de médico, mas, por prevenção, faz as consultas regulares.

 

As diferenças entre a vida de Iolanda e de Clélia são pequenas. Mas são também infinitamente grandes. Podem ser a simples diferença entre a saúde e a doença.