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(Postal da Wanda, aos 5 anos de idade, 1917)

 

 

(Wanda, sua irmã Jeannette, seu padrasto José Basílio de Almeida e sua mãe, Amélia Gonçalves de Almeida, 1924)

 

(Wanda, Primeira Comunhão, 1924)

 

 

(Wanda e Alfredo, seu marido, em 1933)


 

Nessa semana, no dia 22 de Fevereiro, 2021, se já não tivesse passado pro lado de lá dessa vida, minha mãe completaria 109 anos. Ela foi uma mulher dessas muito à frente do seu tempo. E a ela eu devo muito da minha consciência social, da certeza de que, sobre o planeta, somos todos interdependentes. Publico aqui dois textos que escrevi sobre ela alguns meses antes de sua morte.

 

Wanda e os Mortos

memória Isabel Fomm de Vasconcellos

 

 

quinta-feira, 23 de novembro de 2006 22:02

 

Há alguns dias minha mãe está dizendo que precisa telefonar para o meu irmão Alvan para ver se ele já separou as roupas que vai levar. Na primeira vez, eu disse a ela que o Alvan já tinha morrido, perguntei se ela não se lembrava, ela se lembrou. Das outras vezes, não disse nada.

Hoje, além de falar do Alvan, ela falou na mãe dela. Há uns 10 anos que ela não fala na mãe, a não ser em referências longínquas. A mãe dela morreu em 1968.

- Não sei onde está minha mãe, não sei se está no papel ou onde...

Sobre o Alvan disse:
- Será que ele está naquela lista?

- Que lista, mãe?

- Na lista dos mortos vivos.

E hoje me disse:
- Não passa um dia sem que eu pense na Bebé (minha tia,
falecida, irmã do meu pai, aquela de quem eu mesma pareço um clone).

Ontem, quando eu disse que hoje seria dia 23 de novembro, aniversário do meu tio Oswaldo, ela falou que ia telefonar para ele. E eu:
- Mas ele morreu, mãe. Você não se lembra?

- Mas eu vou telefonar assim mesmo.

Os mortos parecem estar rodeando a minha mãe.

Talvez preparando para ela a passagem.

Do meu irmão Alfredinho ela nem se lembra. Nunca mais perguntou dele. Até uns meses atrás, além de fazer um sacrifício para ir vê-lo, ela telefonava para a clínica para ter notícias dele. Agora parece que ela esqueceu que ele existe.

Mas ela está bem, está até mais alegre, hoje me agradeceu por tudo o que eu tenho feito por ela e eu disse:
- Mas a Fulana acha que eu só faço mal para você.

- Mande a Fulana à merda.

Conversei, agora há pouco, com o meu amigo psiquiatra, Kalil Duailibi, e ele disse que a atitude da Fulana é apenas maldade.

Fiquei pensando no que meu amigo Tom falou sobre a velhice, sobre a preparação para a Morte.

Minha mãe agora se encontra com os seus mortos. Está preparando o seu caminho.

Ela é linda. Ela repara nas flores do jardim e nos pássaros. Ela ri porque percebe que já mal consegue fazer música ao piano e diz:
- Sua mãe está uma inútil. - e ri.

Ela ri e eu sofro. Sofro porque ela já não consegue tocar bem o piano. Sofro porque ela não sabe que dia é hoje. Sofro porque aquele monstro de lucidez, que ela sempre foi, se perde nas brumas da confusão mental. Mas me alegro quando ela me beija e me agradece por aquilo que estou fazendo por ela.

Amanhã vou à rádio. Depois, quando eu chegar, vou descongelar aquelas batatinhas que ela adora, colocar num isopor, e, quando for para a casa dela, vou passar na loja de conveniência da Rubem Berta e comprar duas latas geladas de cerveja e faremos um piquenique no jardim, sob a linda árvore florida.

Ela, eu e os mortos.

 

 

Um Sonho para Wanda

 

(Wanda e Alfredo no Castelo, 1980)                                                      (Wanda, aos 95 anos em 2007, sua última foto)

 

terça-feira, 18 de outubro de 2005 22:43
 

Por favor, meu pai, vá, esta noite, em sonhos, ver a minha mãe. Vá até ela e diga que você, aí do Reino da Morte, ainda a ama, como eu sei que você a amou nos longos 53 anos em que compartilhavam a vida. Ela está velhinha, tão linda ela velhinha, distante das urgências dos corpos jovens. Mas não está longe da necessidade de afeto. Vá até ela e leve um sonho lindo, cheio de ternura e amor, como foram os anos em que vocês compartilharam a vida.

Sou a maior testemunha do amor de vocês. Sou o produto desse amor e, convenhamos, não sou um produto de se jogar fora.

Vá até ela e lhe dê, em sonhos, um beijo, daqueles super sensuais e cheios de amor, e lhe dê um pouco da alegria que ela perdeu com a sua morte. Peça licença aí ao Chefe da Morte, implore se for preciso, diga que a sua filhinha, a caçula temporona, a sua menininha (que hoje já é também uma velha, mas tão bem amada) foi quem pediu.

A sua Wanda amada sofreu tanto nestes últimos anos, enfiada naquele apartamento na Praia e eu, meu pai, fiz o que eu acho que é o melhor para ela, o melhor possível neste momento.

Por favor, paizão, dê-lhe um sonho com a sua presença.

Tive, nesta vida, este grande privilégio de nascer de dois seres cheios de amor e é por isso, certamente, que a minha vida é hoje plena, absoluta, de amor, amor pelo meu homem, pelos meus leitores e telespectadores e eu vivo assim, livre das porcarias cotidianas, por um milagre dos céus, plena de saúde e alegria.

Assim, meu pai, eu te peço. Vá visitar minha mãe esta noite. Leve a ela a certeza de que ela é muito amada, que é amada além da morte e também na vida. Leve a ela a esperança de que alguma coisa existe para além desta vida. Leve a ela o seu amor – que eu sei, é verdade, nunca a abandonou.

Por favor, paizão, também tenho tanta saudade de você, também queria ver você nos meus sonhos, mas não se importe com isso, vá lá, aos sonhos dela. E diga que a ama, como disse em suas serenatas do começo do século passado, como disse na única composição musical da sua vida, aquela valsa chamada Wanda. Como disse nas tantas vezes que a sua câmera registrou a imagem dela.

Não sei quando, afinal, vocês irão novamente se reencontrar, na vida ou na morte. Mas dê a ela o benefício e alegria de um sonho. Um sonho lindo, com flores, porque flores é absolutamente tudo o que ela merece. E descanse em paz. Até o renascer, numa nova primavera.

 

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Cleds Fernanda

Eu chorei com a crônica Wanda e os mortos. Vc é maravilhosa, Isabel. Que tocante....

Tico Del Nero

Adorei o texto .Esse casal era adorável ! Tenho muitas lembranças gostosas

Ana Maria Da Silva Bacci

Que linda historia de amor filial, Isabel.

Helena Maria Calil

Isabel , entendo muito bem isso que você relata de sua mãe! A minha mãe se foi há pouco mais de um ano, depois de passar anos sob meus cuidados diretos. Ele teve uma demência senil, mas no final morreu de um AVCI .

Isabel Fomm de Vasconcellos

Helena, você nem imagina o que a minha mãe me disse um dia: "Espero que você morra cedo" -- ou seja, ela não queria que eu passasse pelos sofrimentos que a velhice avançada acaba causando. Acho que a Medicina -- que jura não fazer o Mal -- deveria dar o direito às pessoas de escolherem a hora de sua própria morte. Condená-las à demência senil e à incapacidade física é sim fazer o Mal. O que você diria, doutora?

    Helena Maria Calil

Isabel , concordo plenamente com você! No entanto, essa questão ética está longe de ser consensual.

Isabel Fomm de Vasconcellos

Thadeu, muito obrigada por compartilhar!

Thadeu Olivi Almeida

 imagina saudades da minha tia avó querida! tia Wanda era especial um beijo tia Bel

Lucy Riccardi

ISABEL QUERIDA...LI

A SUA LINDA APRESENTAÇÃO ,DESSA SUA EXPERIÊNCIA COM ESSA MULHER TAMBÉM NÃO MENOS LINDA QUE SUA HISTÓRIA!!!

A VIDA É MESMO UMA CAIXA DE SURPRESA OU SENDO MAIS PESSIMISTA, UMA "ROLETA RUSSA"...

TEMOS QUE ESTAR EM ALERTA ,E, AO MESMO TEMPO ,NOS ENTREGAR AOS DESÍGNIOS DE DEUS!!! TOMARA ELE NOS SEJA BENEVOLENTE... POIS ACHO,UM TANTO HIPÓCRITA ACREDITAR QUE A VELHICE SEJA EM QQ NÍVEL, A MELHOR IDADE,PRA QQ UM!

PARABÉNS

 PELO TEXTO, IMPECÁVEL!🌹❤️ BEIJO 😘

Marilda Pellegrino
Querida Isabel um Beijinho carinhoso!!!!!