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DUAS CAMINHADAS - de Maria José Silveira

 

 

 

 

 

Monet 1895 campos de verão

 

1. Nós? Viciados?
Sim, suponho que somos todos, ainda que apenas um pouco. É fácil o ser humano se viciar em um monte de coisas. E ainda que muitos gostem de usar o termo “viciar” para tudo que lhes dá algum prazer, o fato é que acabamos de fato viciados até mesmo sem o saber, e quando menos esperamos.
Viciados em correr ou caminhar, por exemplo. Reconhecemos (os que correm ou caminham) que com o tempo isso se torna um quase vício ou vício mesmo, aliás, um bom vício – porque também nesse campo o mundo é dividido entre os bons, os maus, e os mais ou menos.
Mas só recentemente a ciência – com sua inerente capacidade de nos espantar – descobriu que o sol também vicia. Os que adoram se estirar na beira de uma piscina ou na areia de uma praia, ainda que não saibam, possivelmente são viciados em sol. Assim como acontece na corrida ou caminhada, o sol libera em nosso corpo as famosas betas-endorfinas – tipo prima-irmã da morfina – que nos trazem uma grata sensação de prazer e bem-estar. São elas que nos fazem correr maratonas, escalar montanhas, pedalar na falsa bicicleta de uma academia, nadar como se um tubarão viesse atrás, ou enfrentar qualquer outro exercício intenso.
São as endorfinas, inclusive, que podem nos fazer mais resistentes à dor e a suprimem no primeiríssimo momento em que ela é provocada, por exemplo, por uma facada, um tiro, um acidente. São as responsáveis pela cara de espanto – sem esgar de dor – de quem parece admirar o jorro de sangue gorgolejante saindo do corte profundo de sua barriga, como nos acostumamos a ver no cinema e na TV. Naquele momento preciso, a desditosa vítima de fato não está sentindo dor, graças à força da endorfina que o choque produziu no seu corpo.
É por essa e outras que eu, particularmente, amo as endorfinas. Devo ser viciada até mais nelas do que nas caminhadas e no sol. E se a ciência descobrir outra maneira de estimular sua saudável produção, estarei à espera.
Quer dizer, minto um pouco falando assim. Nem meu amor por elas me convence a correr desesperada pelas ruas, como se fosse tirar meu pai da forca. Para mim, nada de correr, pular, saltitar. Em compensação, amo caminhar, e minhas endorfinas devem retribuir o amor que sinto por elas; ainda que apenas caminhando, às vezes até mais perto do passo de lesma do que da rapidez dos passinhos de um coelho, em geral elas me fazem voltar pra casa com minha autoestima mais ou menos em dia.
Amor com amor se paga, suponho que deve ser o lema delas.
Ao que só me cabe dizer: “Obrigada, queridas”.

 

2. Pequenas consequências de tolas hesitações
O rap vinha de um radinho branco apoiado na caixa de engraxate do jovem sentado no banco do parque. Passei por ele em minha caminhada, gostando do que ele estava escutando. O parque é pequeno, e ao me aproximar na segunda volta, reparei nos seus pés sem meias, enfiados nas sandálias japonesas já finas de tão gastas. O rap continuava, o mesmo som enraivecido. Olha a incongruência: um engraxate de sandália japonesa nesse primeiro friozinho na cidade.
Na terceira volta, ele acendia um cigarro provavelmente de maconha, escutando o rap. Jeito simpático, na dele, tranquilão, olhando as árvores do parque. Tive vontade de parar para conversar. Mas que ele fume seu cigarro primeiro. Nas outras voltas, foi aumentando essa vontade de me sentar logo perto dele e perguntar que rap era aquele, e coisas mais básicas, tipo onde ele morava, havia estudado?, como é que era isso ou aquilo, esse tipo de papo que nos leva a conhecer melhor as pessoas que, embora na contramão, fazem parte de nosso mesmo mundo.
Mas continuei hesitando. Na última volta vi que ele se levantava e pegava sua caixa de engraxate. Só então apressei meu passo e me aproximei: “Posso te perguntar uma coisa?” “Claro”, respondeu, jeitão super acessível. “Que rap é esse que estava tocando?” “Racionais MC”, respondeu. “Ah, não reconheci”, eu disse. Ele continuou, sorrisão no rosto: “Tenho tudo dele, curto muito rap. Funk também.” Fez uma pequena pausa: “Fala da nossa realidade.” “Também acho”, concordei - o que é a pura verdade. Não sou lá conhecedora do rap, mas gosto dos Racionais, Mano Brown, Criolo, Sabotage. É um desabafo raivoso da cidade, batida tensa de revolta e indignação. Som perfeito para dizer com emoção e clareza que as coisas têm que mudar. Citei-os muitas vezes em meu romance sobre São Paulo, “Pauliceia de mil dentes”.
Mas voltando à conversa com o rapaz.
Ele teria seus dezesseis anos. Cabelo crespo, moreno, calça de moletom, casaco vermelho sobre a camiseta. E aquela beleza de sorriso no rosto. Só que o momento havia passado.
Fiquei chateada comigo mesma. Por que não parei antes? Por que hesitei por tantas voltas? Achei que ele estivesse drogado? Temi que recebesse mal minha tentativa de conversa? Por ser um rapaz negro, pobre, um engraxate sem sapatos?
Ou por respeitar a privacidade dele e sua música, como disse a mim mesma no começo? Bobagem.
Vamos ser francos.
Certamente foi por algum obscuro conjunto de preconceitos enfiados por minha goela abaixo, ainda que à revelia. Uma conversa com ele poderia ter sido instrutiva, interessante e divertida. Foi uma pena perder essa chance do acaso.
E tanto perdi eu, como também, por tabela, perderam vocês, leitores, que poderiam estar lendo agora uma crônica muito mais interessante. Como pequena amostra, vejam só o que ele estava escutando:
“É isso aí, você não pode parar
Esperar o tempo ruim vir te abraçar
Não espere o futuro mudar sua vida
O futuro é consequência do presente.”