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Tatuagens na alma

POR MARIA JOSÉ SILVEIRA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

- Viu que o Matogrosso foi levado ontem?
- Os homens tão passando todo dia. Também levaram o Gero.
- O Gero, rapaz! Aquele vai matar é muito na cadeia.
- Se vai! Com aquela raiva que ele tem!
- Outro dia veio uma mulher comprar pulseiras e ele tava sentado aí, que nem você, mas quando viu que ela ia levar só dois reais, falou pra ela num repente, Por que que não compra mais? Compra uns 10 pau de uma vez que ele precisa muito mais do que você, sua piranha! Rapaz! O maxilar dele chega que tremia e o olho parecia querer sair das órbitas pra morder a bicha. Ela saiu foi zunindo sem comprar foi nada. E eu que fiquei no preju.
- Num falou nada com ele?
- Eu sou doido? Mexer com aquele cara é entregar a alma pro diabo.
- Caramba!
- Mas sabe aquela velha que de vez em quando para por aqui? Ela contou que conheceu Gero de menino, que era esperto pra burro, um crânio, ela disse. Aprendeu a ler sozinho, perguntando pra um e pra outro. Escrever, não, que não tinha onde escrever. Mas tinha cabeça quando menino, só que foi pro reformatório e saiu de lá com essa raiva monstra.
- Reformatório mata qualquer um.
- Ela contou que ele era dos mais bonzinhos. Tipo menino que vive brincando, vai pra porta das padarias ver se descola um pão com mortadela, e furta uma coisa ali, outra aqui, essas bobagens que todo mundo furta, vai me dizer que não? Nem vou dizer os grandes, que esses todos sabem que furtam, e muito, mas essas madames aí, vai me dizer que não furtam quando podem? Mais ainda dos empregados, vai dizer que não? Agora pega os meninos só porque eles tão na rua, e mandam pro reformatório porque furtaram um chocolate, um brinquedinho, um chiclé. Eu mesmo vivia pegando chiclé das bancas, rapaz. Mesmo quando morava com meus pais e tudo. Quero ver se tem um filho de deus que nunca roubou na vida.
- Tá certim, irmão.
- Essa velha falou que foi depois que ele foi levado pelos homens que ele pegou essa raiva. Vai saber o que fizeram lá com ele. E eu tinha até paciência com o cara. Tinha dó. Pra ter aquela raiva que ele tinha é preciso ter sofrido muito nas mãos dos homens. Foi o que eu disse pra velha. E que pra ser diferente, era preciso ter nascido em outra vida, não é não? Num outro universo. Só que a velha disse que não precisava de nada disso, que pra curar as tatuagens que deixaram na alma dele só precisava mesmo que o mundo fosse bom.

 


 

(Essa era a conversa de dois jovens artesãos, vendedores de rua, posicionados no vão do MASP. O curioso era que parecia uma animada conversa alegre, com os dois dando boas risadas. Mas entendi: uma conversa realista, temperada com bom humor, era a única maneira que os dois tinham para aguentar a situação que todos eles viviam, e não pirar também com a mesma raiva que pirou o Gero.)

 

ilustração: Botero, série Tortura