Um dia de abril

 

 

Maria José Silveira

 

Do dia 1 de abril de 1964 o que mais me lembro é do rádio tocando músicas fúnebres. Meu pai, tenso, saindo para o Congresso e o deixando ligado, na esperança de que escutássemos alguma rara notícia, ainda que censurada, e minha mãe preocupada atendendo o telefone que tocava sem parar.

“Os militares tomaram o poder”, “Jango está foragido”.

O ambiente era pesado, e tão fúnebre quanto a música das rádios.

Dias assim parecem perturbar o próprio ar de onde estamos. Posso estar exagerando, mas acho que não: sirenes ao longe, tanques passando nas ruas desertas são coisas que mudam a cara da cidade. Notícias de prisão, do voo de Jango, de quarteladas em tal ou qual cidade, de explosões aqui e ali, e o ambiente de insegurança se instalando dentro das casas.

Algo de muito grave estava acontecendo, mas nem de longe eu podia imaginar quão grave. Nem de longe imaginava como aquele dia mudaria a vida do país e, em consequência, também a minha.

Brasília era ainda uma cidade vermelha, cheia de pó, muito sol, poucas árvores, poucos bares e lojas, muita lama, em vários lugares o jeitão de acampamento, amigas minhas ainda moravam nas casas de madeira construídas para os engenheiros nos anos da construção,

Não sei o que se passava por minha jovem cabeça, olhando da grande janela do meu quarto de onde se via o eixo. Não saímos de casa, ninguém sabia ao certo o que aqueles homens duros, empertigados em suas fardas estariam fazendo, e o dia permanece nebuloso na minha cabeça. Jovens como eu naquele momento não tinham como entender o que se passava. Jovens tenros em geral são alienados, desinformados do coletivo, desinteressados do coletivo; o coletivo do jovem é seu grupo de amigos, o mundo ainda pequeno o bastante para caber tão só o grupo de amigos, os namorados, as paixonites, a escola, a família.

Eu fazia aquela idiotice que se chamava curso Normal, em um pequeno colégio de freiras. Entre minhas colegas, havia uma amiga especial, Siboneide. Nós duas havíamos começado a ler um livro de capa dura azul, “Fundamentos da Dialética”, de Pulitizer, fascinadas com o que descobríamos. Não me lembro como veio parar em nossas mãos, e nenhuma de nós tinha a menor condição de prever que aquele logo seria um livro proibido.

Como iríamos saber o que nos aguardava?

Congresso fechado, deputados cassados e presos, instituições democráticas fechadas, mentes brilhantes perseguidas, universidades aterrorizadas, inúmeras prisões feitas, inúmeras mortes, tanques nas ruas, censura nos jornais e rádios, sindicatos fechados, trabalhadores sem direitos, artistas censurados, cidadãos exilados: uma ditadura é isso. Um país sem direitos, oprimido, e com medo.

O resultado foram os 21 anos que deixaram o país com mais miséria, mais problemas, mais ignorância. E o rescaldo que, depois de 50 anos, ainda nos acompanha, porque é muito difícil, e leva muito tempo, superar as perdas de tantos anos e conseguir tomar um rumo livre e justo.

 

"Dias assim parecem perturbar o próprio ar de onde estamos. Posso estar exagerando, mas acho que não."

 

Armando Alves, 1964

 

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