Meu Aplauso

por Maria José Silveira

 

 

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Goiás, o grande planalto no coração do Brasil coberto de cerrado, é (ainda) uma terra de fronteira. Terra de terra vermelha, da música sertaneja, e de uma subespécie clássica: o machão goiano.

 E não foi justo de lá que veio essa notícia de fazer inveja a outros estados que se dizem de vanguarda: um delegado que mudou de sexo, conseguiu sua nova identidade na Justiça e agora voltará para trabalhar na Delegacia da Mulher.

Justo nesse momento em que a questão de gênero e preferências sexuais provoca tantas ações preconceituosas e desumanas, e aqui em São Paulo, a megalópole do país, a perseguição aos diferentes é notícia de quase todo dia.

Como Goiás é minha terra, coloco aqui uma pequena homenagem a essa atitude que só merece aplauso. Trata-se de um pequeno trecho da personagem transexual Percília do meu romance “Pauliceia de mil dentes”. É quando ela, depois de feita a cirurgia de mudança de sexo, e enquanto espera pela oficialização de sua identidade feminina, conhece um policial por quem, no decorrer do romance, vai se apaixonar.

Aí está:

 

           “O policial se aproxima pelo outro lado do cordão. Bonitão. Cara de educado.

Percília pergunta mais uma vez o que está acontecendo.

Um elemento armado, com uma faca e garrafas pet com gasolina ou uma bomba, ainda está sendo investigado – ele diz.

O senhor faz parte da operação? – e como quem não percebe o que uma parte de seu corpo faz, embora o gesto seja muito medido, muito estudado, ela coloca as mãos de dedos longos e unhas vinho arroxeadas no cordão bem perto dele. Até se estranha, pra falar a verdade. Nunca teve muita simpatia por policiais. É só ver fardamento, seja de que cor for, pra pensar em repressão. Mas esse tem um quê diferente, uma coisa qualquer que a faz pensar em possibilidades.

Sou do Gate, Grupo de Ações Táticas Especiais. Especialista em desarme de bombas. Acho que não vão precisar de mim.

De imediato, ela percebe que ele está mentindo. Não tem nada da seriedade nem dos apetrechos que deve ter quem vive desarmando bombas, mas Percília perdoa tudo em quem a trata como a mulher que é. E acha bonitinho ele querer impressioná-la com mentiras. Assim que tiver os documentos em ordem, não vai precisar ter medo de ninguém. Não vai ter que dizer quem era. Só quem é. Percília Becari. Nome sonoro e chique. Percília Becari. Eu. Muito prazer.

O policial ali parado, fingindo importância, é uma provocação. Mas o sargento o chama de longe e ele a olha com o manjado olharzinho de que-pena, desaparece.

Ela nem chegou a dizer o nome pra ele.

O nome que teve tanto trabalho pra decidir. Dra. Lila disse que podia ser qualquer um e por muito tempo ela pensou em Loretta, com dois ts, ou Liandra. Mas acabou ficando mesmo com Percília que tinha a vantagem de poder continuar com o mesmo apelido com que já era conhecida, Perci, de Percival, seu horrível nome da certidão original, equivocado e brega. Percília é único – ela não conhece nenhuma outra mulher que se chame assim. E se tem uma coisa que ela sabe que é, é única. E depois, muito gente já a conhecia como Percília, o nome que usou na carteira falsificada. O que a fez parar na cadeia, enquadrada por falsificação de documento. Mas como há tantas peripécias que embora sem intenção o destino vira para o bem, foi assim que ela conheceu a Dra. Lila, e sua mudança de vida começou.

(...)

Mas cadê meu policial mentiroso? Ôba!, ali está ele e olhando para cá. Vou já escrever o numerozinho do meu celular nesse papelucho e lhe dar, como quem não quer nada. Nunca quis graça com policial, mas esse tem um jeito que me comoveu, e ainda tem uma covinha no queixo. Só porque é policial não pode ter a mente aberta e um coração bom? Logo eu, com preconceitos! Tantas vezes as coisas não acontecem quando a gente menos espera? Quem sabe ele não vai ser meu grande amor? Por que se eu contasse pra alguém que apesar de todo esse tamanho e esse porte, praticamente não sei o que é sexo, alguém acreditaria? Acreditaria? Sei, sei, outro exagero meu, essa afirmação não é assim total totalmente verdadeira, mas é um pouco verdadeira, não no sentido exatamente literal da coisa, mas no sentido emocional, que é o que importa. Nunca ninguém me amou pelo que sou, e eu também, em contrapartida, nunca pude amar ninguém porque posso ser matusquela, espiroquetada, ensandecida, o que for, mas burra não, burra eu não sou. E já sofri tanto sem amar, imagine amando! Minha própria tumba, não seria eu a cavar. Mas agora sinto que está na hora, que posso, que preciso, que mereço, que mais dia menos dia isso vai me acontecer. No fundo, como todo mundo, é só isso o que eu quero.”