A língua do Infeliz 

                                               Maria José Silveira

 
 

 

 

Jacker Yerka, 1952, Paraíso e Inferno

 

 

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Não posso passar nervoso, o médico falou. Mas como é que não vou passar nervoso com um marido desses?

Ele chega, senta no sofá, põe o pé na mesinha de centro, não sem antes tirar a meia de seda preta, primeiro a esquerda, depois a direita. Joga as meias de lado, pega o controle, põe naquele canal que só tem futebol e esportes.

Levanta, pega uma garrafa de cerveja da geladeira e um copo daqueles de geleia do armário, volta a sentar. Toma um gole, passa a língua em volta da boca fina, dá cinco minutinhos – eu conto no relógio – e levanta outra vez, vai até o armário, pega um saquinho de amendoim, volta e senta no sofá. Não põe um punhado na boca, como gente normal faz: põe de um em um ou de dois em dois – também já contei. Fica lá até que eu digo a janta tá mesa.

Ele se ergue feito um poste, senta na cabeceira, e se serve de arroz, feijão, bife, nessa ordem, e sem misturar. Põe um pouquinho de alface e uma fatia de tomate do lado, despeja um fio de azeite, pronto. Não põe sal na salada, nunca pôs, é costume dele desde sei lá quando – essa conta eu cansei de fazer. Começa a comer sem olhar pro meu lado.

Como foi seu dia?, pergunto.

O de sempre, ele responde. Isso, quando está bonzinho, quando não está, sacode os ombros.

A essa altura, meu olho já encheu de lágrimas, mas eu seguro.

Seu irmão telefonou, digo. Perguntou quando você vai lá.

Ele nem tchum.

Disse que tá tudo bem, que sua irmã já saiu do hospital. 

Ele põe o garfo cheio na boca.

Então eu deixo o silêncio ir passando mas não aguento muito temo. O peso de silêncios assim é carga demais pra mim. Dona Tereza teve aqui, eu digo, e trouxe um pedaço de bolo, daqueles de fubá que ela faz pras freguesas. Perguntou se eu tô tomando os remédios, e eu disse que tô, quero melhorar, não quero ficar nesse desânimo, nessa tristeza.

Ele mastiga o bife de boca aberta.

Ela me perguntou se tô cumprindo as ordens do médico, continuo, engolindo o choro. Eu disse que sim, que não vejo a hora de voltar a sorrir um pouco, ter vontade de sair, de me arrumar, passar batom – lembra aquele batom vermelho forte, acho que se chamava vermelho carmesim, que você gostava? Quando a gente namorava, lembra? Você nem importava se manchasse a gola da camisa.

Então, sabe o que ele faz? Pega um palito do paliteiro, enfia naquela boca de lábios secos, arrasta a cadeira pra trás, e volta pra televisão. Sem falar uma palavra. E assim é todo dia, toda semana, já passou meses mudo, eu marquei. Daí quando eu pego o resto da comida e jogo no chão, espatifo os pratos e avanço pra cima dele com a faca na mão, disposta a arrancar a língua do infeliz pra ver se ela continua no lugar, dizem que eu é que estou ficando louca.

Você não acha que ele faz isso de propósito?

 

 

(Publicado por primeira vez em “O Popular”, de Goiânia)

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