Jussara

                     Maria José Silveira

                                                                                                                                                                                                                                                                                     Matisse, 1915, Família de Pintores

            No vão da porta entre a sala e a copa, equilibrando-se nos pés trançados como um nó, a menina olhava. Olhos castanhos querendo pular das órbitas.

          Era o que ela fazia, com grande espanto: olhava.

Olhava a casa da patroa da mãe.

Domingo de festa, e precisando de ajuda, a patroa deixou que a arrumadeira levasse a filha de sete anos que não tinha onde ficar no dia de trabalho extra.

Sete anos, idade de descobertas. E de fato ali estava ela em plena ação de descobrimento de uma parte do mundo que nunca fizera parte do seu.

A casa espaçosa, cheia de salas, quartos, banheiros, a fartura que via nas frutas, doces, comidas, o movimento e agitação da preparação de uma festa.

Os olhos trabalhavam curiosos, mas intimidados. Querendo se abandonar a seu frenesi interior, porém contidos. Para o que olhar primeiro, para quem?

E lá foi ela, acompanhando a mãe. Até os quartos, onde a viu varrer o chão e arrumar as camas e as roupas espalhadas. Até os banheiros, onde a viu lavar a pia, a privada, o chão. Até a sala, onde a viu abrir o espaço para a chegada do bufê. De volta à cozinha onde a viu fazer isso e aquilo.

 A patroa era ótima, a família da patroa era ótima, todos atentos ao trato gentil com a menina, mas como escapar? Como escapar da subalternidade da posição de filha de uma empregada doméstica? Por melhores e mais justos que fossem os patrões, o duro muro que separa as classes estava ali, invisível, sujeitando sua mãe a servir a mãe de outras crianças. Sim, havia crianças na família e, sim: em certo momento Jussara se juntou a elas. Aliás, era também essa outra razão para sua presença ali: brincar e fazer companhia aso filhos da casa. Nas brincadeiras é fácil fingir que somos todos iguais; e já que o mundo é assim, que Jussara se divirta um pouco brincando com brinquedos bacanas que desconhece. 

E eu, por um momento, quis mergulhar naquela alminha, ver através daqueles olhos escuros. Sentir sua tentativa de se equilibrar nas perninhas finas e trançadas, nervosas. Sim, como não estaria nervosa? Via aquele mundo com desmedida admiração, estava feliz em participar dele naquele dia, mas não se sentia à vontade. E me perguntei: o quanto assumiria da posição subalterna da mãe? Como entenderia a separação, a diferença?

À noite, com o que sonharia?

Será que em seu espanto se lembraria dos contos de fada?  Será que conhecia as histórias das borralheiras? Via-se um pouco como elas? Ou, talvez o mais provável, pensaria em cenas vistas na tevê? Via-se participando do núcleo rico de uma novela?

E será que um dia, fazendo mais uma vez o trajeto de quase duas horas entre o local onde mora e o bairro das patroas, ela se sentirá capaz de se fazer a grande pergunta cuja resposta definirá o rumo de sua vida?

“Por que estamos aqui e eles lá?”

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