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-- Posso caminhar sozinha – protestou Susana – diante da brutalidade que sentiu no gesto da enfermeira.

-- Mocinha, aqui ninguém pode nada, a não ser o que eu quiser que possa.

 

 

Livro 2 em 1

Um só volume, um livro ao contrário do outro: a capa de um é a contracapa do outro.

 

Um Castelo Além do Tempo : Ficção -

Susana vem de 2019 para encontrar George em 1910, no Castelo fictício, mas inspirado no verdadeiro.

Loucas aventuras e extensões da mesma pessoa no tempo. Serão as mesmas almas?

 

Um Castelo Entre as Árvores : Memória

- 3 períodos diferentes vividos no Castelo real: de 1959 a 1967; de 1979 a 1987 e em 2017.

 

 

 

 

Um Castelo Além do Tempo

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

 

amostra: capítulos 8, A Loucura e 9, De volta ao Castelo

 

 

 

(Susana está em 1910, depois de viajar no Tempo, de 2019, para o passado, no Castelo)


Capítulo 8 – A Loucura
 

Quando o Dr. Waldo falou em levá-la para um moderno tratamento psiquiátrico, a fim de restaurar-lhe a memória, Susana não sabia o que fazer. Primeiro disse que não seria necessário, mentiu que a memória lhe estava voltando aos poucos, recordava-se de alguns momentos com sua família, algumas imagens que lhe pareciam familiares, vinham-lhe sempre à mente e que ela acreditava que, em breve, poderia recordar-se de tudo.

-- Mais um motivo para fazer o tratamento, Susana! – disse ele, entusiasmado. O Dr. Francisco já conseguiu inúmeros sucessos com muitos pacientes através desse tratamento.

Susana não teve outra saída senão concordar. Se contasse a verdade aí sim o prestigiado doutor a levaria correndo a um manicômio.

Quando, porém, sentada ao lado do médico, no carro que o chofer dele dirigia, percebeu que estavam saindo da cidade, um arrepio de horror e medo passou-lhe pela espinha.

-- Quem é mesmo esse Dr. Francisco que estamos indo ver? – perguntou ela ao médico.

-- É o mais importante psiquiatra de São Paulo, Dr. Francisco Franco da Rocha.

Susana pensou em saltar do carro. Sabia agora para onde estava sendo levada, o Manicômio do Juqueri, o famoso e desumano, por décadas, hospital psiquiátrico que nada mais fôra do que um depósito de loucos.

 

Susana conhecia a história. Fôra no final do século XIX que Franco da Rocha (que mais tarde daria nome ao hospital) encomendara ao famoso arquiteto Ramos de Azevedo a construção da Colônia Agrícola de Juqueri, onde toda e qualquer pessoa indesejável pelas famílias ou pela sociedade, tivesse ela ou não uma patologia mental, era internada. Um vez lá, dificilmente se saía. Se entrasse são, sairia louco, pelas experiências com as incipientes drogas, pela convivência com insanos, pelos maus tratos, pelos primitivos medicamentos.

 

Susana, que era advogada no seu tempo, defendera, no início da carreira, uma mulher que matara o ex-marido que a internara numa clínica psiquiátrica para livrar-se dela. Mas isso fôra numa clínica moderna, não num depósito de loucos como o Juqueri. Mesmo assim, quando essa mulher saiu de lá, a primeira coisa que fez foi comprar um revólver e descarregá-lo no marido. Susana conseguira apenas que ela retornasse para a clínica, alegando problemas mentais. Fôra nesse processo que ela estudara a história dos manicômios no Brasil e sabia muito bem para que espécie de inferno estava sendo levada.

Quase entrou em pânico. Mas uma esperança brotou-lhe na alma. Ela conhecia o Dr. Waldo; naquela semana que passara trabalhando no hospital, o vira clinicando, atendendo as pessoas, conversando com familiares de pacientes. Ele era, sem dúvida, um homem de boa índole, de bom coração. Não a internaria num manicômio, claro que não. Perguntou:
-- O Dr. Francisco tem seu consultório fora da cidade?

-- Sim. Ele atende seus pacientes dentro do Asilo de Alienados do Juqueri.

-- Ai, doutor – disse ela com franqueza – o senhor não vai me internar num manicômio apenas porque perdi a memória, não é?

O médico deu um tapinha amigável na mão dela, sobre o assento do carro:
-- Claro que não, Susana. Você ficará lá apenas os dias necessários para completar o ciclo do tratamento.

-- O senhor tem coragem de me deixar lá, no meio dos loucos? Eu tenho medo.

-- Não há nada a temer – respondeu ele – Você ficará na ala dos pacientes sem gravidade.

Mas, quando entraram no pavilhão onde Dr. Franco da Rocha atendia, Susana estremeceu de pavor. Podia ver, pela janela da sala de espera do consultório, o pátio lá fora, com muitas mulheres, algumas deitadas, outros sentadas, todas no chão de terra batida, algumas com o olhar perdido, outras mergulhadas em evidente delírio, alucinadas.
 

O Dr. Waldo despediu-se dela:
-- Não precisa se assustar. Você está nas melhores mãos nas quais poderia estar.

Sentou-se num banco de pedra, na antessala, tentando ignorar a cena que a janela mostrava, mas ouvia os gritos de dor, de pavor, as risadas histéricas...
Finalmente a porta do consultório se abriu e uma enfermeira muito gorda a pegou pelo braço: -- Vamos entrar.

-- Posso caminhar sozinha – protestou Susana – diante da brutalidade que sentiu no gesto da enfermeira.

-- Mocinha, aqui ninguém pode nada, a não ser o que eu quiser que possa.

Susana imaginava que conversaria com o médico. Mas este mal levantou a cabeça ao perguntar: -- A senhora é a moça sem memória, indicação do Dr. Waldo, do Marianitas?

-- Sim – respondeu Susana.O médico ergueu a cabeça e em vez de olhar para ela, olhou para a enfermeira:
-- Muito bem, Maria, você sabe o que fazer.

Susana foi levada a um aposento muito úmido, com as paredes mofadas e teve suas roupas praticamente arrancadas pela enfermeira. Queria gritar. Queria esmurrar a enfermeira, mas sabia que isso seria pior para ela. Se reagisse, seria realmente tratada como louca e teria o mesmo destino daquelas infelizes jogadas no pátio, sujas, descabeladas, algumas até feridas, as moscas pousando nas chagas. A enfermeira a prendeu contra a parede, pelos pulsos e pelos tornozelos, com cintas feitas de couro que deixavam algum espaço para que ela se movesse. Foi então que viu as grossas mangueiras penduradas na parede oposta. A enfermeira chamou alguém pelo vão da porta: -- Pode vir, a franga já está no espeto!

Um homem entrou e ficou observando, encostado à porta que a enfermeira fechara. Então Susana viu, com terror, que a enfermeira tirava do suporte uma daquelas mangueiras e, de repente, Susana sentiu uma dor descomunal na altura do peito, o feroz e grosso jato d’água a empurrava contra a parede e ela escorregou. Aí já não podia mais dizer qual parte do corpo doía. Tentou se levantar do chão, mas a enfermeira dirigia o jato para as suas pernas e ia subindo. A água entrava por todos os orifícios do seu corpo, pela vagina, pelo ânus, pelos ouvidos, pela boca e até pelos olhos. No meio do martírio conseguiu ver que o homem, encostado à porta, claramente se masturbava. Tinha prazer no sofrimento dela! Depois de uma eternidade, sentiu que a erguiam. Percebeu que tinha urinado e evacuado, a sujeira escorrendo por um ralo horizontal, no chão junto à parede imunda. A enfermeira a empurrou, dizendo:
-- Já tomou o banho, agora vamos para os drinks.

Chorando, Susana foi obrigada a engolir diversas beberagens amargas e algumas pílulas. Logo, começou a sentir tonturas e sonolência. Vestiram nela um daqueles uniformes, iguais aos das moças do pátio e ela não viu mais nada.

Acordou no pátio, junto às loucas. Todo o seu corpo doía, como se tivessem lhe triturado os ossos. Os lábios estavam feridos e ela pensou: Não. Isso não pode ser verdade. Eu devo estar sonhando..., Mas sabia que não estava. Preciso manter a calma. Se eu surtar, nunca conseguirei sair daqui. Não vão me abandonar aqui. O Dr. Waldo certamente virá me visitar e eu direi a ele..., Mas se não vier? Bem, George deve estar me procurando... E se não estiver? E se Evelyn tivesse dito que ela simplesmente se esvanecera no ar, voltando pro seu próprio tempo? E as freiras, tão gentis e simpáticas, como podiam permitir que a torturassem assim?

Estava pensando em tudo isso, quase entrando em desespero, quando ouviu a voz de George, aos gritos, exigindo que o levassem “até sua irmã” ... Susana quase riu, teria rido, se não estivesse tão destruída. O diabo do homem sabia que só mesmo dizendo que ela era da família é que conseguiria tirá-la dali. E isso porque ele era rico e poderoso. Se não fosse, certamente nem dizendo isso conseguiria.

Mais uma eternidade, em alguns minutos, se passou até que ele viesse até ela, a abraçasse, erguesse e dissesse: -- Vamos embora daqui...

-- O senhor não pode levá-la dessa maneira – tentou esbravejar a enfermeira gorda quando viu Susana, amparada pelos braços de George, entrar na antessala do consultório do Dr. Francisco.

George respondeu:
-- Posso e vou, imediatamente. E vocês se deem por felizes por eu não ir aos jornais denunciar esses maus tratos sofridos por minha pobre irmãzinha...

-- Nós estamos trabalhando – disse a enfermeira com arrogância – com as mais modernas técnicas de cura psiquiátrica, técnicas que visam, através do tratamento químico, quanto físico, trazer de volta a preciosa memória da sua irmã.

Mas George já saía pela porta e, auxiliado pelo chofer, Otto, acomodava Susana no banco de trás do Ford, quase deitada e tendo o caríssimo paletó de George por travesseiro. Ele sentou-se no banco da frente e ordenou: -- Vamos para casa!

Sentado de lado no banco da frente, esticou o braço e segurava a mão de Susana. Ela desandou a chorar e chorou por quase uma hora. Mas, quando percebeu que já estavam saindo novamente da cidade, rumo ao sul, disse com voz fraca:

-- O celular... ficou lá... no hospital das Marianitas. Eu o escondi num fundo falso que fiz na gaveta da escrivaninha onde trabalhava.

O chofer fez meia volta, à mando de George. O sol já se punha quando o carro entrou pelos portões do hospital, na Avenida Paulista. George passou pela grande entrada da instituição com fúria, derrubando com um empurrão um porteiro que tentou detê-lo. Abriu com violência a porta do escritório central, onde uma freira, que escrevia, ergueu-se assustada:
-- O que é isso? Quem é o senhor?

-- Qual é a mesa de Susana? – perguntou ele.

-- Mas... o que significa isso? – perguntou a freira, assustada.

-- Qual é a mesa de Susana? – voltou a perguntar, dessa vez com um grito.

A freira apontou para uma escrivaninha que, por sorte, tinha uma única gaveta. George arrancou o fundo falso, pegou o estojo de couro onde estava o celular e seu carregador e saiu, não sem antes dizer:

-- Boa noite, madre!

A noite já ia alta quando o Ford dos Meyer chegou ao Castelo. Susana, tentando se recompor, já se sentara no banco do carro, os olhos agora secos. Sabia que demoraria a esquecer aquela horrível experiência traumática. Sentia muita pena das mulheres que vira no Juqueri e pensou, que em 2019, apesar do movimento antimanicomial, na sua opinião, ser de um radicalismo estúpido e sem fundamento científico, as pessoas com doença mental recebiam um tratamento muito mais humanizado e eficiente, em muitos casos. George ajudou-a a descer do carro e viu, horrorizado, os hematomas que a água deixara no corpo dela:
-- O que é isso, Susana? Essas manchas roxas? Você foi espancada?

-- Não. Pior que isso, eu acho. Foram poderosos jatos d’água que me empurravam contra uma parede.

-- Meu Deus! – fez George, horrorizado.

-- As marcas nos lábios – apressou-se ela em explicar – provavelmente são resultado das beberagens que me fizeram engolir.

A governanta veio correndo em direção ao casal e ajudou Susana a subir as escadas, dizendo solícita: -- Vou mandar ao seu quarto, imediatamente, uma boa sopa e uma refeição mais leve.

Susana disse, para o escândalo da governanta:
-- E, por gentileza, se for possível, uma dose dupla de uísque sem gelo.

George riu:
-- Uma para mim também.

Susana tomou um longo banho de banheira, ajudada por uma das criadas, vestiu seu traje de dormir e foi encontrar George, que não arredara o pé do quarto, esperando por ela.
Brindaram com o uísque e ele perguntou:

-- Ainda dói?
-- Não – respondeu ela – só na alma.

-- Mas por que você foi embora, sem nem ao menos esperar que eu voltasse para se despedir?

Susana ia dizendo: “Evelyn me expulsou” – mas percebeu que, se dissesse, criaria um abismo entre George e a irmã e entre Evelyn e ela própria.

-- Percebi que sua irmã não acreditara na minha história e decidi partir. Disse ao chofer do táxi que não tinha dinheiro, que perdera a memória e que não sabia para onde ir. Ele me levou para as freiras, que me acolheram e tentaram encontrar a minha família que, evidentemente, não existe nesse tempo. Enquanto isso, em retribuição à moradia, refeições e trajes que elas me deram, eu me voluntariei para trabalhar e elas me puseram no escritório. Tinham até estabelecido um ordenado – e aqui ela riu --, que no meu tempo seria “salário” – para que eu pudesse me manter com dignidade até a suposta volta da minha memória.

-- E, como, afinal te mandaram para o Juqueri, meu amor? – e então um pensamento horrível passou-lhe pela cabeça: -- Você não contou a elas que veio do futuro, contou?

Susana riu:
-- Seria motivo suficiente para me trancarem lá para sempre – Não foi isso. Quando perceberam que não conseguiam mesmo encontrar a minha família, o Dr. Waldo sugeriu um tratamento para me fazer recuperar a memória. E o tal “tratamento” deles passa por torturas aquáticas e químicas...

-- Meu Deus! – exclamou George – Parece que loucos são esse médicos e não os seus pacientes.

Susana pensou no sadismo do enfermeiro que se masturbava enquanto ela, nua, era torturada pelos estúpidos jatos d’água. Não disse nada. Sabia que se dissesse, George era capaz de ir lá e matar o sujeito.

-- E como foi que você me encontrou, afinal? – perguntou ela.

-- Contratei um detetive que descobriu que você estava lá no hospital das freiras de Santa Marianita. Mas, hoje de manhã, quando cheguei lá, você já não estava. Fôra levada pelo médico para o Juqueri na tarde anterior.

-- Como? Isso significa que passei a noite de ontem lá?

-- Sim – respondeu ele.

-- Só me lembro do horror da tortura aquática e, de, em seguida, acordar no pátio.

-- É melhor não lembrar mais nada – disse ele. Amanhã mando o chofer buscar sua bolsa e seu vestido que estão lá nas freiras e tentaremos esquecer todo esse pesadelo.


Capítulo 9 – De Volta ao Castelo

George acordou antes de Susana. Ela dormia profundamente e ele deu-lhe um beijo no rosto, chamou uma das criadas para ficar ali, ao lado da cama dela e desceu para o café. Os exportadores de algodão que se danassem. Ele não deixaria Susana sozinha naquele dia, depois de tanto sofrimento que ela experimentara.

Estava terminando o café quando Evelyn entrou na sala, as malas sendo carregadas por Otto e pelo chofer de táxi, aquele mesmo.

-- Salve, minha amada irmã! – saudou-a George – Você saiu da praia de madrugada para estar aqui a essa hora?

-- Não. Saí ontem à tarde e dormi na cidade, fui jantar em casa de Úrsula.

George disse:

-- Posso lhe perguntar que fim, afinal, levou a nossa amiga Susana?

-- Ah... Ela desapareceu. Deve ter voltado para o lugar de onde veio. – respondeu Evelyn, sentando-se à mesa.

-- Bem, eu sinto decepcioná-la, minha irmã. Mas ela não desapareceu. Saiu daqui porque você não acreditava nela, foi se abrigar com as irmãs Marianitas naquele novo hospital da Avenida Paulista, passou lá mais de uma semana e foi internada, pelo benemérito fundador do hospital, Dr. Waldo Song, no Asilo de Alienados do Juqueri. Por sorte, e também por esforço, consegui tirá-la de lá, ontem. Ela está dormindo em seu quarto agora.

-- Você ainda acredita nela, não é mesmo? – perguntou Evelyn.

-- Claro que acredito, minha irmã. Ela está dizendo a verdade. Confesso que seria difícil de acreditar se ela não tivesse esse vestido de estranho tecido e seu telefone celular.

-- Talvez se eu pudesse ver funcionando esse tal desse celular...

-- Você poderá – disse Susana, que descia as escadas em direção à mesa do café. – Eu lhe peço perdão, Evelyn, por ter tido que mentir. Mas você não acreditaria se eu contasse a verdade.

-- Mas contou a ele! – respondeu Evelyn irritada – Por que não a mim, então? Quem me garante que você não inventou isso para conquistar o meu irmão?

-- Aqui está o meu aparelho celular – disse Susana – tirando o celular do bolso—Você pode ver que ele está apagado, está sem energia. Mas George me disse que vocês têm um gerador elétrico na casa. Levem-me até ele. Se eu puder tirar energia dele, se ele tiver um fio, com dois polos, positivo e negativo, eu amarrarei a ponta descascada desses fios a esses dois terminais da tomada do carregador e meu celular voltará a funcionar. Eu poderei então mostrar a você o que George já viu.

O gerador estava no porão da casa. Subterrânea também era a adega, com um elegante bar de paredes de lambri, onde Susana ainda não estivera, em 1910, mas onde seus pais haviam dado uma festa de aniversário em 1993. Entraram na sala do gerador por essa adega. O chofer, que entendia um pouco da coisa, conseguiu dois terminais de energia, um polo positivo e outro negativo. Estava curioso para saber o que os patrões estavam querendo com aquilo, mas George simplesmente disse:

-- É o bastante, Otto – Obrigado e pode se retirar.

Assim que foi estabelecida a corrente elétrica para o carregador, o celular acendeu com o desenhinho da bateria sendo carregada. Evelyn deu um grito de espanto. Alguns minutos depois, entrou a tela inicial e Susana foi direto para as fotos. Lá estava o selfie noturno dela com George, na grama coalhada de vagalumes. Evelyn olhava estarrecida. Viu as imagens de uma cidade futurística, coisa que ela jamais sonhara... Por fim, percebeu que aquilo tudo não poderia simplesmente ser um truque... Afastou-se e desabou num dos grandes bancos de madeira do bar da adega. George e Susana sentaram-se, quietos, ao lado dela.

Por um momento, que pareceu muito mais do que apenas um momento, havia apenas o silêncio. Por fim, Evelyn deu um profundo suspiro e disse:
-- Minha cara, se essa pequena máquina for um truque é o truque mais impressionante que já vi em toda a minha vida. Mais impressionante ainda que as façanhas do Mestre Houdini.

-- Então, agora você acredita em mim? – perguntou Susana.

-- Não sei – respondeu Evelyn – Ainda pode ser um truque, um filme aí dentro dessa caixinha e você pode ser qualquer uma, uma mulher do povo, uma criada, uma operária, que inventou essa história porque soube que meu irmão estava escrevendo sobre 2019...

-- Evelyn, -- disse Susana -- nós estamos em 1910. Não existem filmes pequenos o suficiente para caberem num celular. O cinema ainda nem tem som e você viu que todos os vídeos do meu celular têm som... Olhe, para ser sincera, nem eu mesma estava acreditando quando cheguei aqui. Pensei que também estivesse sendo vítima de uma brincadeira de mau gosto, que estivesse em um cenário... – aqui interrompeu-se, ia dizendo “cenário virtual”, mas, se dissesse, teria que se explicar ainda mais do que já fizera. Continuou: -- Vítima de uma ilusão, enfim. Eu estava aqui mesmo, em 6 de janeiro de 2019, no Castelo, que, no meu tempo é um clube. Não vinha aqui desde 1999 e fiquei assustada com as mudanças. Estava pensando nisso quando uma nuvem me envolveu e eu vim parar aqui, no tempo de vocês. Não sei como isso foi possível.

-- Realmente – disse Evelyn – eu também não sei e confesso que essa sua máquina me impressionou bastante, mas não sei se estou plenamente convencida. Para mim, é muito mais provável que tudo isso seja um engodo...

-- Se você ainda não acredita em mim, é melhor que eu me vá, então.-- respondeu Susana, desanimada.

-- Vá para onde? – perguntou Evelyn, com certo sarcasmo – De volta para de onde veio?

-- Não sei se posso voltar ao meu tempo – respondeu Susana – Mas me reconheço capaz de viver em qualquer tempo. Sou forte, formada, posso trabalhar e me sustentar, posso dar aulas, qualquer coisa...

-- Nem pense nisso! – exclamou George – Não quero que você se vá, nem para o seu tempo, nem para longe dessa casa. Seu lugar é aqui. Case-se comigo e passará a ter o inquestionável direito de viver no Castelo.

-- Casar-se com ela? – perguntou Evelyn – Como? Ela não passa de uma Maria Ninguém, sem família, sem nome. Nossos pais jamais aprovariam esse casamento!

-- Evelyn, meu nome é Susana de Vasconcellos Expedito Gaetano, mas alguns dos meus antepassados levam o nome de família de Carmen Fomm de Vasconcellos, a escritora que sua amiga Úrsula e também sua própria modista, disseram que se parece demais comigo, é minha bisavó. Ela se casará com João Antonio Expedito, mas todos os seus descendentes farão questão de carregar seu sobrenome de solteira, porque ela ainda será uma figura importante no mundo literário. Corre, inclusive, na família, a lenda de que, antes de se casar, Carmen teria tido um tórrido amor, um amante que morreu muito jovem, antes de eles poderem se casar, e que o meu bisavô, filho dela, teria sido filho desse amante e não do Expedito. É uma lenda romântica, mas é uma lenda. Ah! Espere!! Eu tenho aqui, em alguma pasta, no celular, uma fotografia dela, em 1915 e também uma fotografia tirada quando eu me vesti e me penteei exatamente como ela... Veja, aqui está!

Evelyn fitou longamente as duas fotografias que Susana colocara numa única tela, em seu celular. Mais um momento interminável se passou. Outro profundo suspiro e Evelyn disse:
-- Sim. São extremamente parecidas, mas são sem dúvida, duas mulheres diferentes. Há pequenas diferenças, inclusive no porte, no olhar...Digamos que seja verdade – começou Evelyn a capitular -- e digamos que vocês dois estejam mesmo vivendo um amor de verdade, que queiram se casar e formar sua família, o que diríamos aos nossos pais? Como explicar a sua presença aqui, de onde você teria vindo, onde estariam os seus parentes? Em que escola você teria estudado? Qual seria a sua origem, a sua formação, a sua posição na nossa sociedade?

George disse impulsivamente:
-- Contaremos a verdade e está acabado.

-- Nossos pais diriam que enlouquecemos. Jamais acreditariam. Além disso, seria inevitável – continuou Evelyn – que, convivendo em nosso meio, Susana acabasse encontrando-se com Carmen e como explicaríamos tal semelhança física? Não, isso não é possível.

George, convencido de que Evelyn recuperara a confiança em Susana, foi, afinal para a fábrica. As duas mulheres passaram toda a manhã caminhando por entre as árvores, no bosque do Castelo, almoçaram juntas e Evelyn, ao ouvir Susana falar sobre o futuro, foi se convencendo de que tudo era, de fato, verdade. Uma verdade sem explicação. Mas que explicação tem a vida, afinal? – perguntava-se ela. No fim da tarde, estavam subindo a alameda das árvores, quando viram que George chegava.

-- Veio mais cedo para casa, meu irmão? – perguntou Evelyn – Como foi hoje a sua reunião com os exportadores?

-- Excelente! – respondeu ele, animado, dando um beijo no rosto de cada uma delas – Vamos certamente conseguir fazer grandes novos negócios! Papai vai adorar a notícia, quando chegar.

Nesse instante uma névoa baixou sobre eles e, quando se dissipou, George se viu sozinho, na alameda das árvores. A governanta aproximou-se dele:
-- Senhor, sua irmã o espera na sala de vidros para o chá. Ela quer que se junte às senhoritas que lá estão, senhoritas Úrsula e Carmen.

George, completamente desorientado, sem compreender ainda o que se passara, mas sabendo que a névoa levara sua amada de volta ao seu próprio tempo, recompôs-se do susto e dirigiu-se à sala de vidro onde as moças tagarelavam alegremente. Antes, porém, bateu os olhos num jornal que Evelyn deixara aberto sobre o sofá da sala: domingo, 9 de janeiro de 1910... Ele estava de volta a duas semanas antes, ao dia em que Susana viera para ele. À mesa estavam Úrsula, Evelyn e Carmen... Carmen, a versão 1910 da sua amada Susana. Quando seus olhos se encontraram, ele soube que Carmen e Susana eram a mesma pessoa, a mesma alma e que, independentemente do tempo e do espaço, aquela mulher era, fôra e sempre seria, o amor das vidas dele.

Então Evelyn disse:
-- Essa noite eu tive um sonho completamente estranho com uma mulher que veio do futuro...
....
Quando a névoa se dissipou, Susana percebeu que estava na alameda das árvores do Castelo, sim, mas que era de novo aquela alameda de mirradas árvores. Voltei – pensou – estou de novo em 2019... Estou exatamente onde estava antes de partir para 1910.
-- Que dia é hoje? – perguntou ela com ar casual a uma mulher que passava pela alameda.

-- 6 de janeiro de 2019 – foi a resposta.

Meu Deus... Tudo terá sido um sonho? Uma ilusão? Levou à mão à testa e percebeu que estava vestindo, sobre o seu vestido godê de flores, fabricado em 2019, o blazer de albene que Evelyn mandara fazer especialmente para ela em 1910. Sentiu que alguém lhe tocava de leve no braço. Quando se voltou lá estava ele, George! Os mesmos olhos azuis, a mesma barba negra, mas em trajes de 2019, jeans, camisa polo, jaqueta.
-- Você está se sentindo bem? – perguntou ele – Tive a impressão de que teve uma espécie de vertigem.

-- Sim, estou bem – respondeu ela – Mas você me parece estranhamente familiar. Seu nome por acaso é George? Eu o conheço daqui do clube ou de algum outro lugar?

Ele deu uma risada alegre:
-- Pouco provável. É a primeira vez que estou vindo aqui. George – disse ele tirando do bolso da jaqueta um pequeno livro de bolso, impresso em papel pardo, claramente tipográfico – foi esse meu antepassado, autor desse livrinho. Eu sou Leo, Leopoldo Alfredo, na verdade, nome do meu avô paterno. George, no entanto, era esse meu bisavô, cujo livro, de autoria dele, encontrei ontem na biblioteca de meu recém-falecido pai...

-- Oh, meus sentimentos... –disse Susana, estendendo a mão para o pequeno volume, mas já querendo arrancá-lo das mãos dele.

Ele continuou:
-- É engraçado... Agora percebo que você se parece muito com a mulher que ilustra a capa do livro. Veja, é um desenho, parece-se com você.

Susana viu-se retratada na capa do volume: “Quando o Homem Desequilibrou a Terra” por George Meyer....

--- Eu sempre soube... – continuou ele -- como é mesmo seu nome?

-- Susana.

-- Então, eu sempre soube, Susana, que esse Castelo, à beira da represa do Guarabitinga, fôra construído por um dos meus antepassados. Mas nunca me interessei muito por isso, até encontrar esse livro, escrito pelo meu bisavô. Nunca também tinha visto ou ouvido falar em nenhum exemplar dele, teve uma tiragem de apenas 500 cópias, como indicado aqui nessa última página. Impressionante como esse meu avô anteviu o futuro. Na primeira década do século passado, ele descreveu nesse livro os efeitos do nosso atual Aquecimento Global. Quando eu li o livro soube então que esse meu antepassado o escrevera aqui, na torre do Castelo. Assim, resolvi vir conhecer o clube...

-- Posso ver o livro? – perguntou Susana tentando reprimir a emoção.

-- Claro – disse ele estendendo-lhe o exemplar. —É muita coincidência encontrar aqui no Castelo uma moça tão parecida com essa da capa.

Susana abriu o exemplar e leu a dedicatória: “Para Susana, o amor dos meus sonhos e para Carmen, grande amor da minha vida.”

-- Percebo que você se emocionou ao se ver retratada nesse livro tão antigo... – disse Leo.

-- Sim – respondeu ela – é bastante emocionante, talvez seja uma antepassada minha...

-- Você é sócia do clube? – perguntou ele.

-- Sou.

-- Se não tiver nada melhor para fazer, poderia me ciceronear por aí e me mostrar tudo?

-- Claro, terei muito prazer. Eu amo esse lugar e, há pouco, estava apenas lamentando que as árvores dessa alameda não sejam mais as mesmas árvores da minha infância, velhos e grossos troncos que talvez estivessem aqui desde o tempo do seu avô...

Saíram caminhando e, mais adiante, Susana tropeçou. Leo a amparou e suas mãos e seus olhos se encontraram. Daí em diante, caminharam de mãos dadas.

 

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