Voltar para a página inicial   ou  página-site de contos e artigos da escritora Isabel Fomm ou subpágina do Livro Todas as Mulheres São Bruxas   

 

(Christopher Rynn, 2015, Retrato da Bruxa

Lilias Adie queimada na Escocia em 1704)

31 de outubro

All Hallow's Eve

a Noite dos Mortos

por

Isabel Fomm

de Vasconcellos

(assista trailer)

 

O Dia das Bruxas é, na verdade, a noite dos mortos dos povos celtas. All Hallows' Eve – Véspera de todos os santos. Halloween?

Dia de Todos os Santos, primeiro de novembro, um dia antes do dia dos mortos.

A igreja se apoderou de todas as festas e datas comemorativas dos povos que ela chamou de bárbaros e queimou vivos vários desses bárbaros nas fogueiras da santa inquisição, principalmente mulheres. A igreja passou seis séculos queimando mulheres, até que pensou ter conseguido calá-las. Ledo engano. Cá estamos nós, mulheres, ou pelo menos muitas de nós, gritando como sempre em busca da nossa igualdade social.

Queimadas vivas, as Bruxas renasceram e estão começando a reconquistar a sabedoria e o poder que lhes foram brutalmente esmagados.

Falando sério, Todas as Mulheres São Bruxas, mas só algumas sabem disso.

Para as que sabem, na noite de 31 de outubro, uma porta se abre entre os mundos. É o momento em que os mortos retornam para aqueles que os amaram em vida e ainda amam. Pode ser num sonho. Pode ser em forma de uma inspiração. Pode ser numa súbita revelação. Mas é só nessa noite. Depois a porta volta a se fechar.

É por isso que os celtas faziam das abóboras, depois de torná-las ocas, lanternas, com uma vela acesa dentro. Com essas lanternas marcavam caminhos pelos bosques para que os mortos pudessem segui-las para, então, encontrarem os vivos queridos.

Todas essas coisas ainda estão presentes dentro de nós, muito embora pouco tenhamos consciência disso.

31 de outubro não é um dia de doces ou travessuras.

31 de outubro é a noite dos nossos mortos amados. Nesse dia, antes de dormir, peça ao universo que abra a porta de sua alma para alguém que já se foi e que você gostaria muito de reencontrar. Acredite. Você encontrará.
 

 

Wanda, fotografada por Alfredo, 1934

 

(Christopher Rynn, 2015, Retrato da Bruxa Lilias Adie queimada na Escocia em 1704 reconstrução Dundee Universidade )

 

(John William Waterhpouse, 1886, O Círculo Mágico)

 

(Evelyn The Morgan, Poção do Amor))

 

 

Meu Encontro com Wanda

 

 

No Dia das Bruxas, quando se abriu aquela porta que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos, embora eu não tivesse providenciado nenhuma abóbora iluminada, saí a caminhar pela beira da praia ao entardecer e, de repente, na praia já bem deserta, uma figura muito esbelta que vinha em sentido contrário, chamou a minha atenção. Era uma mulher longilínea, usava um vestido fora de moda e um elegante blazer de albene, certamente colocado às pressas para protegê-la do friozinho de fim de tarde.

Quando nos cruzamos ela sorriu e eu a achei incrivelmente familiar. Parecia ter saído de um velho álbum de fotos. Demos apenas alguns passos e ela me chamou:

- Seu nome não é Isabel?

Eu me voltei.

- Sim, eu sou Isabel.

Ela riu, meio tímida, levando a mão direita aos lábios. Então a reconheci. Era a minha mãe, Wanda, aos 18, talvez 20 anos de idade.

- Você é Wanda? – perguntei.

- Como sabe? – respondeu ela se aproximando.

- E como você sabia que eu era Isabel?

- Não tenho certeza, foi um palpite. Sabe, um dia, terei uma filha e darei a ela o nome de Isabel, em homenagem à Princesa, a Redentora, que acabou com a escravidão no Brasil. Isso porque minha filha vai nascer em 13 de maio.

- Você parece muito segura do seu futuro, Wanda.

- Ah, -- riu ela, tirando um  cisco imaginário da saia godê de seu vestido, -- isso é porque eu já vivi essa história e parece que estou pronta a vivê-la de novo...Não sei explicar muito bem.

Lá adiante, sob os coqueiros, havia um quiosque. Propus:

- Vamos nos sentar numa daquelas mesas e conversar um pouco? Isto é, se você não se importar de ser vista conversando com uma mulher tão mais velha como eu...

- Imagine, Isabel, você é uma simpatia e nem parece velha...

- Bom, eu tenho um bom cirurgião plástico, mas nem ele consegue fazer milagres quando se está a um passo dos sessenta...

Ela riu:

- Você é vaidosa!

- Muito.

- Ah, você pode ser mais velha, mas tem um corpo muito bom, muito sensual. E olhe para mim: meus primos costumam me chamar de Chico Esqueleto de tão magra que sou.

- Mas você, magra assim, é o sonho de todas as mulheres de hoje.

Ela pareceu desconcertada.

- Hoje? Que dia é hoje?

- 31 de outubro de 2010.

Desta vez, o que li no rosto dela foi alívio e logo veio uma gargalhada, daquelas bem sinceras, que eu passei a vida admirando nela.

- Ah, bem que eu sabia que estava sonhando. Bem bonito esse sonho com o futuro. Porque todo mundo sabe que hoje é 11 de agosto de 1933...

- E você deve estar preparando o seu enxoval... – interrompi eu.

- Ué, você é alguma adivinha?

- Você vai se casar com o Alfredo em dezembro. É uma vitória, não? Vocês lutaram contra o mundo para ficar juntos.

- Ainda bem que isso é mesmo um sonho. Você sabe até o nome dele.

- Sei muita coisa sobre você.

- Mas olhe – disse ela então com aquela praticidade que sempre a caracterizou—se você tem quase 60 anos em 2010, então no meu tempo você está longe de nascer...

- Nasci dia 13 de maio de 1951.

Ela deu um pulinho, um sobressalto, como num soluço. Nós estávamos sentadas, então, nas mesas do quiosque e a noite estrelada descia rapidamente sobre nós.

- Você é a minha filha.

- Sim, eu sou Isabel Almeida Fomm de Vasconcellos Caetano, sua filha caçula, nascida 15 anos depois do seu filho mais novo. O mais velho é o Alfredinho, nascido em 1934 e o mais novo é o Alvan, de 1936.

- Eles morreram antes de mim, não é?

- Sim.

- Eu sabia. Ainda ontem eu disse à Jeannette, minha irmã, que sabia que morreria depois dos meus filhos... oh... me desculpe.

- Depois dos seus filhos, não da sua filha...

- Eu já morri, não é? Não poderia estar viva em 2010... eu teria 98 anos... ah, mas melhor não saber. E você, filha? Como tem sido a sua vida? Você é feliz?

- Sim, mãezinha, sou feliz, mas trago no peito uma dor aguda, a mesma que me fez enfartar...

- Por que, minha filha? Que dor é essa?

- É a dor de imaginar que não fiz tudo o que podia por você.

- Ah... Mas você fez sim. Você fez até mais do que podia.

- Como você sabe, mãe? Para você eu ainda nem existo.

- Não sei como eu sei, mas sei e pronto.

Eu ri.

- “...E pronto”. Você vivia dizendo isso. Estava sempre ocupada com seu trabalho e eu, acostumada com o excesso de mimos do meu pai, vivia pedindo beijos pra você e você me beijava e dizia: “pronto.” Como quem acaba de cumprir uma obrigação... – e eu ri: -- agora eu acho engraçado mas me lembro que ficava muito puta da vida...

-- E hoje? Você tem quem te mime?

-- Ah, claro, o Caetano vive me mimando, o meu marido.

Então ela aproximou a mão do meu peito e fez um gesto parecido com aquela brincadeira da minha infância, em que os adultos fingiam arrancar o nariz das crianças e, ato contínuo, ergueu o braço com a mão fechada e fingiu jogar alguma coisa ao vento.

- Pronto – disse ela. Joguei fora a sua dor no peito.

- Simples assim? E as tuas dores, as dores que eu te causei?

- Não me lembro de nenhuma. Você se lembra de alguma dor que eu te causei?

Tive que sorrir:

- Imagine, se houve alguma eu já a esqueci.

- É isso – disse ela, com firmeza, e já se levantando.

- Onde você vai?

- Não sei, mas tenho que ir. Meu tempo nesse tempo está esgotado.

Fiz um gesto para me levantar também.

- Não. Fique aí, Bel – disse ela, usando o meu apelido. – Peça uma cerveja e curta um pouco as estrelas. Eu vou indo em direção ao mar. E o mar me levará às estrelas, essas mesmas que você estará fitando.

- Adeus mãezinha – disse eu com lágrimas nos olhos e querendo abraçá-la mas já sabendo que isso seria impossível.--  Você é linda, maravilhosa e chique com esse vestido esvoaçante e esse chiquésimo casaco de albene.

- Acha mesmo? – perguntou ela toda coquete. – Fui eu mesma quem fiz.

- É claro – disse eu, lembrando do sucesso dela como modista das ricaças paulistanas nos anos 1950 e 60.

Então ela se voltou e saiu caminhando em direção ao mar. Foi sumindo, se esmaecendo de leve, e eu pensei ter vislumbrado o vulto de um homem ao lado dela.

Pedi uma cerveja à garçonete. A noite estava muito estrelada.

 

Isabel, 31 de outubro de 2010.

 

 (ps: eu não me lembrava. Mas a foto que escolhi para ilustrar esse texto foi tirada no dia 13 de maio de 1934 e minha mãe estava grávida do Alfredinho, que nasceria em 24 de setembro do mesmo ano...)

 

Comente

Lyzbheth Moura Leite Que delícia de leitura! Tenha um lindo dia das bruxas!

[12:25, 31/10/2019] Tania Santana: Oi Bel
Que lindo o seu encontro com Wanda!
[12:26, 31/10/2019] Tania Santana: Eu ainda me encontro com a minha Vanda nos fins de semana!
Que benção!