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(Romolo Tavani, A Estrela de Belém) Ver Chamada.
Quase Natal. Conto de Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano. 2024.
(para Wimer Bottura, por inspiração de seu livro “Frescobol e/ou Tênis”)
Ana Elisa chora copiosamente defronte à tela de seu computador. Há dias vem recebendo mensagens ofensivas e grosseiras porque se atreveu a postar sua opinião sobre a tentativa de Golpe de Estado, ocorrida quando da vitória legítima de Lula nas urnas, recentemente desvendada e minuciosamente explicada pela Polícia Federal Brasileira.
Anisa – como é chamada pelos amigos – não é mulher de chorar à toa.
Jornalista aposentada passou a maior parte de sua carreira como repórter política em Brasília. E começara muito jovem, recém-saída da faculdade, em plena ditadura militar e, portanto, sob a censura brava que grassava nos meios de comunicação da época. Escapou por pouco de ser presa pelo regime de então. E, nas redações onde atuava, havia sempre um censor para eventualmente se debruçar sobre os ombros dos repórteres, vigiando o que saía de suas antigas máquinas de escrever. Tinha se acostumado a ser xingada, menosprezada, censurada, ao longo de toda a sua vida profissional.
Mas isso parecia nada diante do ódio que se destilava das mensagens recebidas hoje, em 2024, pelas redes sociais. Era uma enxurrada sem fim de insultos, diários e robustos, que acabaram por minar-lhe a resiliência, como se ela não mais pudesse, embora vivesse numa democracia, simplesmente expressar a sua opinião.
Seu choro não é pelos insultos (um deles dizia: “você não passa de uma jornalista podre, como todos os jornalistas”). Suas lágrimas são de absoluta tristeza pela constatação de que em seu país amado, o diálogo sucumbira a uma polarização política ignorante, sem fundamento e cheia de ódio.
O que acontecera com o seu Brasil, afinal?
Ela não sabia, e nem poderia saber, que, naquele momento, Alguém a observava, lá do Céu.
...
Recostado em seu Trono, O Rei dos Reis, se pôs a falar:
-- Começara havia alguns anos. Aquele presidente brasileiro, eleito pelas inverdades que dizia nas redes sociais e, como se descobriria mais tarde, laranja de patentes altas militares que jamais se conformaram em ter perdido o poder, há 4 décadas (depois de 2, de ditadura plena!) começou uma campanha para desacreditar as urnas eletrônicas, aquelas mesmas, eficientes, testadas, comprovadas, à prova de fraude, etc. etc. Aquelas mesmas urnas que o elegeram a ele! Depois passou 4 anos desacreditando o Supremo Tribunal Federal, O Tribunal Superior Eleitoral, esse último elogiado até pelo ex-presidente dos EUA, o Obama. Na pandemia de 2020 lutou por medicamentos ineficazes e contra as vacinas (que os cientistas descobriram à toque de caixa e em tempo recorde!). Tudo isso causou um racha no país. Muita gente acredita nesse sujeito, que passara quase trinta anos como deputado federal do baixo clero e nunca emplacara um projeto sequer... O cara, enquanto presidente, desmontou órgãos de combate ao desmatamento do Pulmão da Terra, órgãos de vigilância sanitária, de mineração... Deixou sem dinheiro a indústria cultural e as universidades federais... Enfim... Uma tragédia! E, quando perdeu nas urnas, para o Trabalhista, tentou de todas as maneiras, um golpe de Estado que o fizesse retornar ao Poder. Não deu certo, mas quase deu!
-- Mas, Chefe, -- retrucou Pedro – isso não é motivo suficiente para você querer ir, nesse Natal de 2024, de novo, à Terra e ao Brasil! Afinal, Você esteve lá, em Maceió,* no ano passado! A Terra tem milhões de locais e países que precisam de Você, isso sem contar o resto dos vastos Universos! Me desculpe, mas eu acho que você se tornou meio obcecado pelo Brasil!
O Chefe riu: -- Lá, atualmente, eles dizem que o Papa é argentino, mas Deus é brasileiro!
-- Pois, particularmente, acho que você embarcou nessa! – disse Pedro, meio bravo.
Deus riu de novo: -- Pois é... a Terra é o mais belo dos planetas que eu criei e, dentro dela, o Brasil sempre foi o país mais encantador. Porque, apesar dos muitíssimos problemas que eles enfrentam todos os dias, a maioria do povo brasileiro sabe dar a volta por cima, sabe se levantar depois da queda, sabe rir e, sobretudo, sabe ser solidário. Sabe amar ao próximo como a si mesmo. Isso sem falar nas festas deles... Carnaval, Círio de Nazaré, Aparecida, as Festas de Largo na Bahia, As Da Cerveja e as regionalistas no Sul... Você deveria ir comigo, Pedro, qualquer dia destes, às Passarelas, Sambódromos, em São Paulo e no Rio, para testemunhar a maravilha que é o espetáculo das Escolas de Samba...
-- Sei... – desdenhou Pedro – muitas delas financiadas pelo ilegal Jogo do Bicho e até pelo crime organizado...
-- Sim, mas não lhes tira o brilho, a alegria e, por trás, sempre a Esperança! E, ademais, meu caro Pedro, toda a beleza do espírito desse povo está balançando diante do que eles chamam de “polarização política” por causa desse presidente, o ex, e dos estragos que ele causou na mente e no coração de grande parte dos brasileiros. Semeou o ódio, a intolerância, o preconceito, a ausência de diálogo... E muitos passaram a acreditar nas coisas que o gabinete do ódio, que ele montou nas redes sociais, vive disseminando até hoje, as famosas fake news, mentiras deslavadas e ignorantes que entristecem as pessoas a tiram-lhes as esperanças na construção de um mundo melhor. O grande desafio agora é fazer com que os brasileiros consigam voltar a dialogar. Que vejam as posições políticas diferentes das suas próprias, como adversárias e não como inimigas.
-- É – capitulou Pedro – já vi que vai ser mais um Natal brasileiro...
...
Anisa reage. Enxuga as patrióticas lágrimas e vai tomar um demorado banho, bem quente (apesar do calor) e com direito a vários cremes hidratantes pelo corpo, depois da chuveirada. Perfuma-se, usa o secador de cabelos para modelar-lhe as madeixas grisalhas e sai, a pé, caminhando pelas superquadras, em direção a um famoso bar da capital, que reúne políticos de toda a ordem e que serve uma maravilhoso baião-de-dois aos seus clientes.
Sabe que, ali, encontrará pessoas ainda capazes de dialogar, embora, lá mesmo, já tenha havido vários episódios de agressão, verbal e até física, nesses conturbados tempos dominados pelo ódio.
É cedo. O bar está meio vazio. Ela senta-se, sozinha, a uma mesa discreta, de canto, junto a uma das janelas. E, num relance, vê no céu, uma estrela cadente. Muito rápida.
Ela não sabe, e nem poderia saber, mas, dentro da estrela estão os anjos – que sempre chegam primeiro no Natal – e o próprio Deus que, desta vez, desce à Terra travestido em um negro forte que tem, na mão direita, um berimbau e, na esquerda, um pandeiro. ...
-- Bom, vocês entenderam – diz Deus aos Anjos – precisamos, desta vez, insuflar nos humanos desse país a ideia do diálogo. Precisamos soprar aos seus ouvidos, a possibilidade de trocas através da conversa franca, tipo frescobol e não tênis. Ou seja, na conversa tênis o adversário faz tudo para derrubar seu oponente, manda a bola com efeito, ou para locais não esperados... Aqui, são adversários! Na conversa frescobol, são parceiros e o seu objetivo é não deixar a bola cair... Entenderam?
Os a anjos balançaram a cabeça em sinal de assentimento.
...
Anisa vê, não sem surpresa, adentrar ao bar o vice-presidente de um dos maiores partidos políticos do Brasil, recentemente empossado no cargo e tendo vindo morar em Brasília, direto de sua cidade natal, o Rio de Janeiro. E ele caminha em direção à sua mesa...
-- Posso sentar-me aqui? – pergunta a ela.
-- Claro, Caio. Seja bem-vindo!
Ela já notara o interesse dele, numa reunião que cobrira, como free lancer, há pouco mais de um mês. Mas pensara que estivera delirando. Afinal, julgava que, há muito, passara do tempo de atrair a atenção masculina. Estava com 68 anos. Era viúva, de um grande amor, sem filhos, e ele... ela nada sabia sobre ele, que aparentemente teria uma idade muito próxima à dela! Mas sentira uma certa atração...
Conversaram banalidades, por algum tempo, até que ele pegou a mão dela sobre a mesa e disse: -- Gostaria de te conhecer melhor...
... -- Não adianta – disse Deus aos Anjos – tentar alcançar o diálogo pela compreensão racional. O amor e sua consequente emoção, são os grandes fatores da transformação. ...
Assim, naquele quase Natal, Anisa e Caio se descobriram com parceiros no frescobol do diálogo, como amantes e como defensores da democracia.
E Deus... Deus voltou para o Céu, com a certeza de que já plantara a primeira semente. Que os Anjos se encarregassem das demais!
Bel. Natal de 2024, 27 de novembro.
*ler o conto de Natal ao qual Pedro se refere.
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