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O Dia em que Papai Telefonou

conto de Isabel Fomm de Vasconcellos

 

 

 

 

 

Di Cavalcanti, 1971

Junho de 1978. Maria Cristina caminha assoviando. Não. Não fica bem, realmente, não fica bem. Uma jovem tão elegante a assoviar pelas ruas, como uma qualquer. Mas Maria Cristina agora é uma qualquer. Aí é que está. E, como uma qualquer, pode assoviar pelas ruas o quanto quiser ou bem entender. Não tem satisfações a dar. Nenhum jornal se interessaria em fotografá-la. Nunca mais levará Rex à exposição. Maria Cristina sorri à lembrança do Rough Collie. Pobre Rex. Talvez seja ele o único, em casa, que realmente sente a sua falta.

 

Além do mais -- continua assoviando -- depois da década libertária dos anos 1960, além de saias curtas e cigarros, mulheres também ganharam o direito de assoviar em público... Também não é uma atitude perigosa, ninguém a consideraria subversiva* por estar assoviando... Ah... Mas se soubessem de sua história, se soubessem de sua origem, talvez pensassem mesmo que ela era uma deles, uma subversiva. Naqueles anos de Ditadura Militar no Brasil, qualquer comportamentinho assim diferente já era o bastante para levantar suspeitas...

 

O ônibus vem lotado. Maria Cristina não se importa. Na verdade, até gosta. Gosta de gente, cheiro de gente, gente do povo. Gosta das cantadas dos homens da rua, gosta dos rostos amontoados do ônibus. Com dificuldade, passa pela roleta. Paga a passagem. Fechando a bolsa, num relance, vislumbra o envelope que chegou esta manhã. Fechado ainda. Ops. Uma freada brusca, vai de encontro a um mulato imenso. Sorri pra ele e se arrepende imediatamente de ter sorrido. O motorista aumenta o volume do rádio. Engraçado. Aqui no Recife os ônibus tem rádio. E pode-se fumar. É claro que não quando está assim lotado. Pela janela, a brisa do mar refresca os passageiros. Por entre duas cabeças, Maria Cristina vê o mar. Avança mais dois passos.

 

Diverte-se imaginando o conteúdo do envelope, fechado ainda, em sua bolsa. Mas irrita-a um pouco a rapidez com que foi localizada. Irrita-a porque a leva de volta a um mundo que muito lhe custou abandonar. Uma coisa entristece: na verdade, reflete Maria Cristina, é muito fácil tentar uma vida nova quando se tem pra onde voltar. Claro que pode voltar. Certamente, na carta, ele estaria pedindo. Ou ordenando. Voltar. Não. Não vai sequer responder ao pai.

 

Duvida que ele venha, mas virá, não, certamente virá. Ficará horrorizado com o apartamento de subsolo, com a falta do carro, com a falta de amigos que ele chamaria "do seu nível". Ficará também horrorizado com suas roupas. Com licença. Maria Cristina desce em frente ao escritório. Até aquele emprego era falso. Bom. Deve ter sido pelo escritório que papai me localizou.

 

Engraçado. É quase impossível livrar-se do dinheiro. Será que ele vai telefonar?

 

Telefonou. Ao meio dia.

 

Não papai, não recebi nenhuma carta e acho terrível que você tenha me localizado. É vendi. Vendi o carro sim. Pra pagar o depósito do aluguel... Não, é pequeno, muito confortável, tem redes e fiz algumas almofadas, não... Eu não quero que você mande nada, não, eu já disse...Olhe, vou desligar.

 

Desligou.

 

Talvez o velho estivesse certo. Meu Deus, meio dia e doze eu tenho que almoçar com Pedro. A lembrança do caranguejo, que há quinze minutos faria vir água à boca, enjoa Maria Cristina. Droga. O pai amargara-lhe o dia.

 

Devia contar a Pedro? Sim, por que não contar?

 

Pedro tinha no rosto uma sombra desconhecida. O que é que está havendo, Tininha? Papai odiaria Pedro. Papai odiaria vê-la chamada de "Tininha". Nada. Não está havendo nada. Meu pai telefonou.

 

Pronto. Estava dito.

 

Pai? Você  me disse que não tinha família.

 

Era mentira. Tinha família e rica. Pois é. Era rica. Rica mesmo. Papai tem fazendas, fábricas, casas de campo, verão na Europa, curso superior nos EUA, como é que ele achava que ela, sem dinheiro e sem família, teria conseguido estudar e ter um emprego como aquele que a mantinha agora? Como, hein?

 

Rica. Rica de sair em coluna social. Rica de ganhar prêmio na exposição de cachorros. Rica de comprar o que bem quisesse, viver onde bem quisesse, mas estava cansada de tanto dinheiro e resolvera vir pro Recife, é tinha fugido mesmo, não, sem mesada, mas o velho tinha meios, claro, sabia que ele acabaria localizan...

 

Então... Isso... É como...uma brincadeira, Tininha, uma brincadeira, quando você cansar, sobe de volta pro seu mundo; ser pobre, lutar, aprender a cozinhar... Eu agora compreendo, este mundo que você diz amar, os nossos passeios, os jangadeiros, eu, tudo...uma brincadeira? As ideias libertárias, as reuniões do partido... Tudo mentira, piada, Tininha. Você é do time dos tubarões da ditadura. Era até capaz de rir, se os homens baixassem no nosso aparelho** e levassem você com os companheiros... Bastaria dizer o nome do seu Papai...

 

Não, Pedro, não é nada disso. Eu realmente queria levar uma vida simples... Mas Papai é que faz parecer assim ...

 

Tá. Pedro também não entende.

 

Saiu. Indignado. Traído. E nem mesmo pagou os caranguejos.

 

Não vai haver mais jangada, eu não sou mais do mundo dele, não sou simples, não posso ser mulher de pescador. Maria Cristina odeia o ônibus lotado que a leva de volta ao trabalho. Odeia o trabalho, odeia o apartamento, o calor, as roupas feias, baratas.

 

Maria Cristina caminha a procura de um posto telefônico ainda aberto. A brisa do mar lhe dá enjoos. Seis e meia. Ele deve estar no clube. Está mesmo. Papai, acho que você tem razão. Não. Se você quer mesmo mandar alguém pra se livrar de tudo aqui, eu posso pegar o primeiro voo. Você estará em Nova Iorque quando? Então nos vemos lá. Não. Você já pagou o depósito**. Está comigo sim. Amanhã? Tá. Eu marco o primeiro voo que houver. Até a vista, então.

 

 

*Subversivo : No Brasil dos anos 1970 ser contra o governo era o bastante para ser tachado de "subversivo, o que subverte a ordem", sinônimo então de "perigoso" ou "marginal"

** Aparelho: moradia onde se escondiam, por algum tempo,  alguns opositores do regime militar na época da ditadura

***depósito compulsório: No tempo da ditadura militar brasileira só era possível sair do país fazendo um depósito em dinheiro, uma quantia bastante alta, só acessível aos ricos.

 
 

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De: Osmar de Almeida Marques
Enviada em: terça-feira, 29 de setembro de 2015 16:03
Para: Isabel Vasconcellos <isabel@isabelvasconcellos.com.br>
Assunto: Novo conto publicado na Revista Portuguesa CEN

Oi Bel,

Gostei muito do conto. Os portugueses são sábios em tê-lo publicado. Nota CEN. Alias, 100.

Gostaria de saber como adquirir os seus livros. É possível fazer diretamente com você? ou...

Aguardo as alternativas. Li até o 5º ou 6º capítulo da ficção e voltarei a ler. Ótimos! Desde que consiga me acessar... kkk

Abraços,

Osmar